segunda-feira, 6 de maio de 2019

Os Assassinatos da Casa Decagonal [Capítulo Um: O Primeiro dia na Ilha, Parte 5]


O primeiro dia terminou sem incidentes.
Eles não tinham outros deveres exceto pelo pedido de manuscritos de Leroux. Eles não são do tipo de pessoa que sairiam para se divertir juntos de qualquer forma, então em seu tempo livre, todos faziam suas próprias vontades.
E assim chegou o fim da tarde.
— Ellery, o que está fazendo com esse baralho sozinho?
Agatha saiu de seu quarto. O cachecol amarelo brilhante que prendia seu longo cabelo dava contraste ao seu conjunto monótono de blusa branca e calça de couro preta.
— Estou interessado nisso ultimamente. Porém, não estou obcecado.
— Nisso o quê? Leitura do futuro?
— Só pode estar brincando. Não estou interessado nisso.
Enquanto embaralhava as cartas na mesa decagonal, Ellery disse:
— Truques de mágica com cartas, é claro.
— Mágica com cartas?
Uma expressão intrigada apareceu no rosto de Agatha por um segundo, mas ela logo assentiu concordando.
— É algo que o interessaria, não é?
— O que me interessaria?
— Enganar outras pessoas.
— Você faz isso parecer algo ruim.
— É mesmo? — Agatha riu. — Então, mostre-me algo. Eu não vi muitos shows de mágicas.
— É bem raro alguém que goste de ficção de mistério não estar interessada em truques de mágica também.
— Não é que não estou interessada. Só não tive muitas oportunidades de ver. Então me mostre.
— Certo. Venha e sente-se.
Com o sol se pondo, o corredor da Casa Decagonal ficou mal iluminado. Agatha sentou-se na cadeira diagonalmente do outro lado da mesa. Ellery juntou suas cartas, organizou-as na mesa e pegou outro deck de cartas do bolso de seu casaco.
— Eu tenho dois decks de cartas com a traseira diferente: uma vermelha e uma azul. Você e eu usaremos um conjunto diferente de cartas. Qual você quer usar?
— Azul — Agatha respondeu no mesmo instante.
— Certo. Você pega estas cartas.
Ellery passou o deck de cartas azuis para o outro lado da mesa.
— Primeiro veja se não tem nada de errado com elas e depois as embaralhe da forma que quiser. Eu vou embaralhar as cartas vermelhas.
— Certo. Parecem ser cartas normais. Dos Estados Unidos?
— O baralho do ¬Bicycle Rider Back. Tem uma ilustração de um anjo pilotando uma bicicleta, está vendo? São o tipo mais popular de cartas por lá.
Ellery pôs seu deck cuidadosamente embaralhado sobre a mesa.
— Agora vamos trocar os decks. Você me dá o deck azul e eu te dou o vermelho. Certo. Agora pegue uma carta do deck e a memorize. Eu também vou pegar uma carta do deck e memorizar.
— Qualquer carta que eu quiser.
— Sim. Pronta? Agora coloque a carta de volta no topo do deck. E agora você corta o deck uma vez, como eu. Agora a metade inferior do deck foi trocada pela superior. Sim, sim, assim mesmo. Agora repita isso duas ou três vezes.
— Estou fazendo certo?
— Perfeitamente. Agora trocamos mais uma vez nossos decks.
O deck azul voltou para as mãos de Agatha. Ellery encarou o fundo de seus olhos e perguntou: “Pronta? Então para resumir o que fizemos: cada um pegou uma carta do deck embaralhado, memorizamos a carta e retornamos e embaralhamos o deck de novo.”
— Sim.
— Agora, Agatha, por favor pegue a carta que você memorizou do seu deck e a coloque sobre a mesa com a face para baixo. Eu pegarei a minha carta deste deck.
Duas cartas, uma vermelha e uma azul, apareceram sobre a mesa. Ellery inalou profundamente e então pediu que Agatha virasse as cartas.
— Ah, como você—?!
Agatha deu um gritinho de surpresa. As cartas eram similares em naipe e número.
— O quatro de copas?
Ellery riu contentemente.

— Ótimo truque, não acha?

Após o pôr do sol, a antiga lamparina a óleo que ficava no meio da mesa decagonal estava acesa. Van a trouxe consigo, sabendo que não havia eletricidade por lá. Ele também preparou uma boa quantidade de grossas velas em cada um dos quartos.
Já havia passado das sete quando eles terminaram o jantar.
— Ellery, que tal explicar o truque de mágica que você fez agora? — disse Agatha, sacudindo os ombros de Ellery. Ela trouxe café para todos.
— É inútil me perguntar várias vezes. É um tabu revelar truques de mágica. É aí que a mágica se difere de ficções de mistério. Não importa quão misteriosa seja o truque, você ficará desapontado quando descobrir o quão simples era.
— Agatha, o Ellery lhe mostrou um dos truques de mágica dele?
— Ah, você também sabia da mágica do Ellery, Leroux?
— Se eu sabia? Ele tem me usado como cobaia o mês inteiro. Eu tive que guardar segredo até ele ficar melhor. Ele consegue ser bem infantil de vez em quando.
— Leroux!
— O que você a mostrou?
— Um ou dois dos simples.
— Então era simples? — Agatha parecia irritada. — Então está tudo bem, não é? Apenas diga logo.
— Eu não posso falar justamente por ser simples. O primeiro que eu lhe mostrei, em particular, é um bem elementar — até crianças sabem fazer. Mas a mágica não é apenas o truque, é sobre a performance e desorientação.
— Performance?
— Sim. Por exemplo —
Ellery pegou uma xícara e tomou um gole de seu café preto.
— Tem uma cena no filme Magia Negra, onde o Anthony Hopkins, que faz o papel de um mágico, performa praticamente o mesmo truque para seu antigo amor. Mas lá não era retratado como um truque normal de mágica, mas um experimento em ESP. O mágico seduzia a garota dizendo que se eles fossem almas gêmeas, escolheriam a mesma carta.
— Oh. E você não tinha a intenção de me seduzir com o mesmo truque?
— Eu não ousaria.
Ellery encolheu os ombros de forma exagerada e tentou um sorriso.
— Infelizmente, no momento eu não tenho coragem de seduzir nossa rainha.
— É um jeito engraçado de se dizer.
— Obrigado. A propósito... — Ellery levantou a xícara de café que estava segurando e a encarou atentamente. — Mudando de assunto, sobre aquele Nakamura Seiji que estávamos falando nesta tarde, sabiam que ele tinha uma grande quantidade de obsessões? Eu senti calafrios quando dei um olhar mais cuidadoso nesta xícara.
Era uma elegante xícara verde-musgo, parte dos utensílios que foram deixados na cozinha. Seu formato que era intrigante. Assim como a casa, esta xícara também tinha um formato decagonal.
— Ele provavelmente pediu que fizessem por encomenda. Este cinzeiro e os pratos que usamos são iguais. Tudo é decagonal. Alguma ideia, Poe?
— Nenhuma.
Poe deixou seu cigarro pela metade no cinzeiro.
— Obviamente, é excêntrico, mas você sabe como os ricos adoram essas coisas.
— Apenas ricos sendo ricos, é?
Ellery segurou sua xícara com as duas mãos e encarou atentamente por dentro. Poderia ter um formato decagonal, mas naquele tamanho, parecia praticamente um círculo perfeito.
— De toda forma, acho que tenha sido bom termos vindo a esta ilha, mesmo que apenas pela Casa Decagonal. Quase quero brindar àqueles que morreram aqui.
— Ellery, a Casa Decagonal pode ser espantosa para todos, mas não há nada além dela na ilha. Apenas pinheiros secos.
— Você está enganada — Poe disse à Agatha.
Há um caminho de pedra sob os penhascos ao oeste das ruínas e há uma escadaria construída lá, então podemos ir até o mar. Talvez eu consiga pescar um pouco.
— Agora que você mencionou isso, Poe, acho que notei que você trouxe alguns equipamentos de pesca. Com sorte poderemos comer peixes frescos amanhã.
Leroux lambeu os lábios.
— Não espere muito de mim — Poe lentamente coçou sua barba.
— Vocês notaram que há algumas cerejeiras atrás desta casa? Os brotos estão maduros, então elas devem florescer em alguns dias.
— Que maravilha! Vamos fazer uma festa de observação de flores[1] então!
— Parece ótimo.
— Flores de cerejeira, hm? O que há com o Japão e suas flores de cerejeira? Pessoalmente, eu acho que as flores de pêssego e ameixa são muito mais agradáveis aos olhos.
— Isso é porque você nunca quer ser igual a outra pessoa, Ellery.
— É mesmo? Sabia que os exaltados do passado distante deste país todos preferiam a ameixa à cerejeira, Leroux?
— Mesmo?
— É claro. Acho que estou correto. Orczy?
Orczy tremeu ao ser chamada repentinamente. Seu rosto corou e ela assentiu levemente.
— Poderia explicar, Orczy?
— ...Sim. No Manyoushuu[2], a ameixa e amur silvergrass são as plantas na maioria dos poemas. Há mais de cem poemas sobre cada uma delas, mas apenas cerca de quarenta sobre cerejeiras,
Tanto Orczy quanto Leroux estavam no segundo ano da faculdade de literatura. Seu foco era literatura inglesa, mas ela também conhecia bem a literatura japonesa.
— Bem, eu nunca ouvi falar sobre isso — disse Agatha, impressionada. Como uma aluna do terceiro ano da faculdade de farmacêutica, ela não sabia nada sobre o assunto.
— Conte mais, Orczy.
— Cer... certo — Orczy respondeu um pouco contra a vontade. — Durante o período que o Manyoushuu foi compilado, a tendência era imitar o continente — a China — então pode ser um reflexo das preferências chinesas. O número de poemas sobre cerejeiras cresceu apenas após a criação do Kokin Wakashuu[3]... mas grande parte era sobre a queda das flores.
— O Kokin Wkashuu, então significa que foi no período Heian[4], eu acho? — perguntou Ellery.
— Foi durante o comando do Imperador Daigo. Início do século dez...
— Poderia ser por causa da visão pessimista do mundo que havia muitos poemas sobre flores caindo?
— Me pergunto. O Imperador Daigo ficou famoso por sua administração de “políticos afortunados”. Mas o período em que as flores de cerejeira começavam a cair também é a mesma em que epidemias cresceram. Dizem que flores de cerejeira atraem doenças, então faziam o festival Hanashizume[5] quase na mesma época todos os anos para afastar as doenças. Então pode ter alguma ligação com isso...
— Entendo.
— O que houve, Van? Você está muito quieto.
Poe encarou Van, que estava sentado ao seu lado, com a cabeça caída.
— Não está se sentindo bem?
— Não, minha cabeça está doendo um pouco.
— Você não parece muito bem. E está com febre.
Van moveu seus ombros para deixá-los mais leves e suspirou profundamente.
— Sinto muito, mas acho que vou para a cama agora.
— Sim, provavelmente é melhor.
— Certo. Bem—
Van pôs as mãos na mesa e lentamente se levantou de seu assento.
— Podem fazer quanto barulho quiserem. Eu não me incomodo.
Eles desejaram uma boa noite e Van voltou para o seu quarto. Sua porta se fechou e, por um segundo, o corredor mal iluminado ficou em silêncio. Eles ouviram o clique metálico da tranca da porta ser girada.
— É a cara dele — disse Carr. Até agora ele esteve tremendo os joelhos em silêncio. O branco de seus olhos se arregalou, como se estivesse nervoso.
— Quem se importa em trancar a porta para pessoas que conhece? Não é como se ele fosse uma garotinha assustada.
— Hoje é uma noite brilhante.
Fingindo não ouvir Carr, Poe olhou para a claraboia decagonal.
 Acho que foi lua cheia há dois dias — observou Leroux. Neste momento, um raio de luz cruzou o céu. Veio do farol no Cabo J—, que alcançava até onde estavam.
— Vejam, há uma auréola ao redor da lua. Significa que irá chover amanhã.
— Ha ha ha, isso é apenas superstição, Agatha.
— Isso foi rude, Ellery. Não é apenas uma superstição. Fica assim por causa do vapor no ar.
— A previsão do tempo disse que o tempo ficaria limpo durante toda a semana.
— Mas é mais científico que estórias sobre um coelho na lua[6].
— Um coelho na lua... — Ellery deu um riso forçado.
— Já ouviu a estória das ilhas Miyako sobre um homem carregando um balde?
— Ah, eu conheço esta história! — o rosto jovial de Leroux se iluminou. — Ele foi enviado ao mundo humano por Deus, carregando um balde com o elixir da imortalidade e um com o elixir da morte. Mas ele os confundiu e deu à cobra o elixir da imortalidade e para a humanidade, o da morte. Como punição, o homem tem que carregar o balde pela eternidade.
— Acho que é isso.
— Os Cóis tem uma lenda similar — disse Poe. — Mas não era um homem que foi enviado, mas um coelho. O coelho falhou em transmitir as palavras do Deus da Lua e, irado, o deus lançou uma lança nele. Foi então que os lábios dos coelhos se partiram em três.
— As pessoas ao redor do mundo criam estórias similares, não é?
Ellery inclinou seu longo corpo no encosto azul e cruzou os braços.
— As pessoas contam as mesmas histórias em todo o mundo. Essa do coelho na lua é conhecida na China, na Ásia Central, na Índia...
— Até na Índia?
— A palavra sânscrita para lua é “ś aśin”, que significa “ter marcas de uma lebre”.
— Uau.
Enquanto pegava seu cigarro do maço sobre a mesa, Poe olhou para a claraboia mais uma vez. A lua amarela brilhante flutuava no céu.
Tsunojima, a Casa Decagonal.
As sombras daqueles presentes eram jogadas nas paredes ao redor pela fraca luz de lamparina.
Lentamente, a noite prosseguiu.

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[1] No Japão, é um costume apreciar a beleza das flores. É chamado de Hanami (花見), que significa observar as flores.
[2] Coleção de Dez Mil Folhas, é a antologia mais antiga da poesia do Japão, compilada no século VIII. Mais de 150 espécies de grama e árvores são mencionadas nos 4.500 registros.
[3] Coleção de Poemas Japoneses de Tempos Antigos e Modernos, é uma antologia imperial da poesia waka (escritas em japonês em contraste das kanshi, que eram escritas em chinês clássico), compilada no século X.
[4] Período japonês entre os anos 794 e 1185. É considerado o auge da corte imperial japonesa e foi um período voltado para as artes, principalmente poesia e literatura.
[5] Acalmar as Flores. Cerimônias feitas no terceiro mês lunar para prevenir que os espíritos da pestilência e praga se espalhassem por todas as direções com as flores para levar doenças.
[6] Há uma lenda japonesa que diz que vive um coelho na lua.

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