domingo, 3 de novembro de 2019

Ring: O Chamado [Parte Dois: Planalto, Capítulo 1]


11 de outubro, quinta-feira

A chuva estava mais forte agora, e Asakawa ligou os limpadores. O clima em Hakone estava propenso a mudanças a qualquer momento. O céu estava claro em Odawara, mas quanto mais subia, mais úmido o ar ficava, e conforme ele se aproximava, encontrava diversos bolsões de ar e chuva. Se fosse manhã, ele conseguiria descobrir o clima nas montanhas pela aparência das nuvens sobre o Monte Hakone. Mas era noite, e sua atenção estava fixa no que quer que passasse pelo brilho de seus faróis. Até que parou o carro e olhou para o céu, ele não havia notado que as estrelas haviam desaparecido. Quando ele pegou o trem bala de Kodama na estação de Tóquio, a cidade ainda estava envolta pelo crepúsculo. Quando ele alugou o carro na estação Atami, a lua ainda estava intermitentemente espiando por brechas nas nuvens. Mas agora as finas gotas d’água passando por seus faróis estavam se tornando um aguaceiro de verdade, batendo contra seu para-brisa.

O relógio digital sobre o velocímetro dizia 19:32. Asakawa rapidamente calculou quanto tempo havia levado para chegar até aqui. Ele pegou o trem às 17:16 em Tóquio, chegando em Atami às 18:07. Quando deixou os portões e terminou a papelada em um local para aluguel de carros, já eram 18:30. Ele parou em um supermercado e comprou duas embalagens de Cup Noodles e uma pequena garrafa de whisky; eram sete horas quando ele conseguiu passar pelo labirinto de ruas de mão-única e sair da cidade.
Um túnel estava diante dele, sua entrada contornada por uma brilhante luz laranja. Do outro lado, logo após entrar na rodovia Atami-Kannami, ele deveria começar a ver as placas para a Terra do Pacífico em Hakone do Sul. O longo túnel o levaria pela Cordilheira Tanna. Entrando nela, o som do vento começou a mudar. Ao mesmo tempo, sua carne, o assento de passageiros, e todo o resto no carro foi banhado em uma luz laranja. Ele conseguia sentir sua calma esvaindo, conseguia sentir seus arrepios surgirem. Não havia carros passando no sentido oposto. Os limpadores rangiam enquanto esfregavam-se contra o para-brisa, agora já seco. Ele os desligou. Deveria chegar em seu destino por volta das oito. Ele não sentia vontade de diminuir seu ritmo, embora a estrada estivesse vazia. Subconscientemente, Asakawa estava temendo o local para onde estava indo.
Às 16:20 da tarde de hoje, Asakawa observou um fax sair da máquina em seu escritório. Era uma resposta do escritório de Atami, e ele esperava que contivesse uma cópia do registro de clientes da Vila Cabana entre os dias 27 e 30 de agosto. Quando ele o viu, fez uma dancinha. Sua intuição estava correta. Havia quatro nomes que ele reconhecia: Nonoyama, Tomoko Oishi, Haruko Tsuji e Takehiko Nomi. Os quatro passaram a noite do dia 29 na cabine B-4. Obviamente, Shuichi Iwata usou o nome de Nonoyama. Com isto, ele agora sabia quando e onde os quatro estiveram juntos: na quarta-feira, dia 29 de agosto, na Vila Cabana, Terra do Pacífico em Hakone do Sul, cabine B-4. Era exatamente uma semana antes de suas mortes misteriosas.
Ali e então, ele pegou o telefone e discou o número da Vila Cabana para fazer uma reserva para esta noite na cabine B-4. Tudo o que ele tinha para amanhã era uma reunião de equipe às onze. Ele poderia passar a noite em Hakone e voltar a tempo facilmente.
...Bem, é isto. Estou indo. Para o local de fato.
Ele estava ansioso. Nunca em seus sonhos mais loucos poderia imaginar o que o aguardava lá.
Havia uma cabine de pedágio assim que ele saiu do túnel, e enquanto dava três moedas de cem ienes[1] ao atendente, perguntou: “A Terra do Pacífico em Hakone do Sul é adiante?”
Ele sabia muito bem que era. Ele checou o mapa inúmeras vezes. Ele apenas sentia que já fazia muito tempo desde que via outro ser humano, e algo dentro dele queria falar. “Há uma placa logo a frente. Vire à esquerda lá.” Ele pegou seu recibo. Com tão pouco tráfego, mal parecia necessário que alguém ficasse parado aqui. Quanto tempo este cara estava planejando ficar parado em sua cabine? Asakawa não fez movimento algum para partir, e o homem começou a lhe dar um olhar de suspeita. Asakawa forçou um sorriso e prosseguiu lentamente.
A alegria que sentiu há algumas horas em estabelecer um horário e local comum para as quatro vítimas havia murchado e morrido. Seus rostos piscaram em suas pálpebras. Eles morreram exatamente uma semana após estar na Vila Cabana. Agora é o momento de voltar, eles pareciam estar lhe dizendo, em tom de vaia. Mas ele não poderia voltar atrás agora. Primeiramente, seus instintos como repórter haviam se aflorado. Por outro lado, não há como negar que ele estava com medo de ficar sozinho. Se ele chamasse Yoshino, teria a chance de que ele viesse correndo, mas ele não achava que ter um colega consigo seria uma boa ideia. Asakawa já havia escrito seu progresso até agora e salvo-o em um disquete. O que ele queria era alguém que não fosse correr de um lado para o outro, ficando em seu caminho, que simplesmente ajudasse-o a prosseguir nisto... Não é como se ele não tivesse alguém em mente. Ele conhecia um homem que viria por pura curiosidade. Ele era um professor de meio expediente em uma universidade, então tinha bastante tempo livre. Era o cara perfeito. Mas era... idiossincrático. Asakawa não estava certo de quanto tempo conseguiria suportar sua personalidade.
Lá, próximo as montanhas, estava a placa para a Terra do Pacífico em Hakone do Sul. Não havia neon algum, apenas um painel branco com letras pretas. Se ele não notasse quando seus faróis passaram por isto, perderia completamente de vista. Asakawa saiu da rodovia e começou a subir uma estrada da montanha entre campos geminados. A estrada parecia incomodamente estreita para a entrada de um resort, e ele teve visões de ser uma rua fechada no meio do nada. Ele teve que desacelerar para passar pelas curvas escuras e íngremes. Ele esperava não encontrar ninguém vindo pelo sentido oposto: não havia espaço para dois carros passarem.
A chuva parou em algum ponto, embora Asakawa apenas tenha percebido isto agora. O padrão do clima parecia diferente entre o leste e o oeste da Cordilheira Tanna.
Ao menos, a estrada não estava fechada, mas continuava subindo cada vez mais. Um tempo depois, ele começou a ver casas de verão espalhadas aqui e ali nos lados da rua, e ela repentinamente se expandiu em duas pistas, a superfície melhorou drasticamente, e semáforos elegantes adornavam o caminho. Asakawa estava maravilhado pela mudança. No minuto em que entrara na Terra do Pacífico, ele foi confrontado com apetrechos exuberantes. Então, o que havia sobre o caminho que levava até aqui? O milharal e ervas crescendo pela estrada diminuíram ainda mais, aumentando seu nervosismo sobre o que havia ao redor da próxima curva do tamanho de um grampo de cabelo.
O edifício de três andares do outro lado do espaçoso estacionamento também funcionava como um centro de informações e restaurante. Sem pensar duas vezes, Asakawa estacionou diante do saguão e caminhou até o corredor. Ele olhou em seu relógio: oito em ponto. Bem a tempo. Em algum lugar, ele ouviu o som de bolas quicando. Havia quatro quadras de tênis sob o centro, com diversas duplas dando tudo de si sob as luzes amareladas. Surpreendentemente, todas as quatro quadras estavam ocupadas. Asakawa não conseguia compreender o que fazia as pessoas vieram até aqui em uma noite de quinta-feira no meio de outubro, apenas para jogar tênis. Bem abaixo das quadras de tênis, ele via as luzes distantes das cidades de Mishima e Numazu, brilhando na escuridão. O vazio adiante, preto como breu, era a Baía de Tago.
Entrando no centro de informações, o restaurante ficava diretamente diante dele. Sua parede externa era de vidro, então ele conseguia ver o interior. Aqui, Asakawa teve outra surpresa. O restaurante fechava às oito, mas metade ainda era ocupada por famílias e jovens mulheres em grupos. O que estava acontecendo aqui? Ele inclinou a cabeça, confuso. De onde todos vieram? Ele não conseguia acreditar que todas estas pessoas vieram pela mesma estrada que o trouxera até aqui. Talvez aquilo que ele havia utilizado era a entrada dos fundos. Devia haver uma estrada maior e mais iluminada em algum outro lugar. Mas foi assim que a garota no telefone havia dito para ele chegar aqui.
“Vá até cerca da metade da estrada Atami-Kannami e vire à esquerda. Dirija montanha acima de lá”. Era exatamente o que Asakawa fizera. Era inconcebível que houvesse outro caminho até aqui.
Assentindo quando lhe disseram que havia passado da hora para últimos pedidos, ele entrou no restaurante. Sob suas enormes janelas, um gramado cuidadosamente preparado ficava gentilmente inclinado na noite para as cidades. As luzes do interior eram intencionalmente fracas, provavelmente para permitir que os clientes observassem melhor a vista das luzes distantes. Asakawa parou um garçom e perguntou onde encontraria a Vila Cabana. O garçom apontou para o salão de entrada por onde Asakawa acabara de passar.
— Siga aquela rua à direita por cerca de duzentos metros. O senhor verá o escritório.
— Há um estacionamento?
— O senhor pode estacionar em frente ao escritório.
Apenas isto. Se ele continuasse em frente ao invés de parar aqui, teria encontrado sozinho. Asakawa conseguia mais ou menos analisar por que fora atraído para este edifício moderno, ao ponto de entrar neste restaurante. Ele achava confortável, de certa forma. No caminho até aqui, ele estava imaginando cabines escuras e completamente primitivas — o perfeito cenário para um filme do Sexta-feira 13 — e não havia nada assim neste edifício. Diante desta prova que o poder da ciência moderna funcionava aqui também, ele sentiu-se aliviado e fortalecido. As únicas coisas que o incomodavam eram a estrada ruim que vinha do mundo abaixo até aqui, e o fato de que, apesar disto, havia diversas pessoas jogando tênis e desfrutando de um jantar aqui no mundo superior. Ele não estava certo do porquê disto o incomodar. Era apenas que, por algum motivo, ninguém aqui parecia muito... natural.
Já que as quadras de tênis e o restaurante estavam lotados, ele deveria estar ouvindo as vozes animadas das pessoas nas cabines de madeira. Isso é o que ele esperava. Entretanto, estando no fim do estacionamento e olhando para o vale abaixo, ele conseguia discernir apenas seis das dez cabines construídas entre as árvores dispersas sobre um declive suave. Tudo abaixo estava imerso nas trevas da floresta, além das pálidas luzes da rua, desamparado por qualquer luz que viesse do interior das cabines. B-4, onde Asakawa passaria a noite, parecia se localizar no limite entre as trevas e a área iluminada — tudo o que ele podia ver era o topo da porta.
Asakawa caminhou até o escritório, abriu a porta, e adentrou o local. Ele ouvia o som de uma televisão, mas não havia sinal de ninguém. O gerente estava em uma sala de estilo japonês nos fundos, à esquerda, e não notou Asakawa. A visão de Asakawa estava bloqueada pelo balcão e ele não conseguia ver a sala. O gerente parecia estar assistindo um filme estadunidense em vídeo, não um programa de TV. Ele ouvia diálogo em inglês enquanto observava o piscar das luzes na tela pelo reflexo da tela em no vidro de uma cabine que ficava logo a frente. A cabine embutida estava repleta de fitas de videocassete, alinhadas perfeitamente em suas capas. Asakawa pôs suas mãos no balcão e falou. Imediatamente, um homem baixo em seus sessenta anos pôs sua cabeça para fora e se curvou, dizendo, “Ah, bem-vindo”. Ele deve ser o mesmo homem que mostrara tão animadamente o registro de clientes para o rapaz do escritório de Atami e ao advogado, pensou Asakawa, sorrindo de volta para ele prazerosamente.
— Eu tenho uma reserva, no nome Asakawa.
O homem abriu seu caderno e confirmou a reserva. — Você está na B-4. Poderia anotar seu nome e endereço aqui?
Asakawa assinou seu nome real. Ele já havia devolvido o cartão de Nonoyama, então não poderia usá-lo.
— Então será apenas você? — o gerente olhou para Asakawa, com suspeita. Ele nunca havia visto alguém ficar aqui sozinho. Quanto àqueles que não são membros, era mais econômico ficar em um hotel, caso seja apenas uma pessoa. O gerente entregou-lhe alguns lençóis e retornou à cabine.
— Se lhe interessar, sinta-se livre para pegar uma emprestada. Temos grande parte dos mais populares.
— Ah, o senhor aluga filmes? — Asakawa correu seu olhar casualmente sobre o título dos filmes que cobriam a parede. Os Caçadores da Arca Perdida, Star Wars, De Volta Para o Futuro, Sexta-feira 13. Todos filmes estadunidenses, principalmente de ficção científica. Muitos lançamentos recentes, também. Provavelmente as cabines eram utilizadas majoritariamente por jovens. Não havia nada que o chamasse a atenção. Além disso, Asakawa ostensivamente viera a trabalho.
— Temo ter trazido trabalho comigo — Asakawa pegou seu processador de palavras de onde havia posto no chão e mostrou ao gerente. Vendo isto, o gerente parecia entender o porquê de ele ficar aqui sozinho.
— Então, há pratos e todo o restante? — perguntou Asakawa, apenas para certificar-se.
— Sim. Utilize tudo o que quiser.
A única coisa que Asakawa precisaria utilizar, contudo, era uma chaleira para ferver a água para preparar seu Cup Noodles. Ele pegou os lençóis e a chave de seu quarto do gerente, que lhe disse como encontrar a B-4 e depois, com estranha formalidade, — Por favor, sinta-se em casa.

Antes de tocar na maçaneta, Asakawa pôs suas luvas de borracha. Ele as trouxe para dar-lhe paz de espírito, como um amuleto para se livrar do vírus desconhecido.
Ele abriu a porta e apertou o interruptor de luz no salão de entrada. Um bulbo de cem watts iluminou uma sala de estar espaçosa. Paredes de papel, carpete, um sofá para quatro pessoas, televisão, aparelho de jantar: tudo era novo, tudo fora funcionalmente preparado. Asakawa retirou seus sapatos e entrou. Havia uma varanda em uma extremidade da sala de estar e pequenos quartos de estilo japonês no térreo e primeiro andar. Era um pouco luxuoso para um único cliente, afinal. Ele enlaçou as cortinas de renda e abriu a porta corrediça de vidro para permitir que o ar noturno entrasse. O quarto estava perfeitamente limpo, como se para trair suas expectativas. Repentinamente lhe ocorreu que ele poderia voltar para casa sem pistas.
Ele entrou no quarto de estilo japonês pela sala de estar e checou o closet. Nada. Ele tirou sua camisa e calça e vestiu um suéter e calças de moletom, e pendurou suas roupas de rua no closet. Depois, subiu as escadas e acendeu a luz deste quarto de estilo japonês. Estou agindo como uma criança, pensou ironicamente. Antes que percebesse, acendeu cada uma das lâmpadas do local.
Com tudo suficientemente iluminado, ele agora abriu a porta do banheiro, gentilmente. Ele checou por dentro primeiro, e deixou a porta entreaberta enquanto estava dentro. O lembrava de seus rituais de medo quando criança, quando tinha muito medo para ir ao banheiro sozinho em noites de verão. Ele costumava deixar a porta um pouco aberta e pedir para seu pai esperá-lo do lado de fora. Um limpo banheiro estava por trás do pano de vidro fosco. Não havia traço algum de vapor, e a área externa da banheira e a banheira em si estavam secas como um deserto. Deve haver algum tempo desde a última vez que alguém esteve aqui. Ele começou a tirar suas luvas de borracha; elas estavam presas em suas mãos suadas. A gélida brisa do planalto soprou no cômodo, perturbando as cortinas.
Asakawa encheu um copo com gelo do freezer e preencheu-o pela metade com o whisky que trouxe. Ele estava prestes a completar com água da torneira, mas hesitou. Fechando a torneira, ele persuadiu-se que preferiria beber de uma vez, com gelo. Ele não tinha coragem para pôr nada deste cômodo em sua boca. Ele foi descuidado o bastante para utilizar os cubos de gelo do freezer, mas estava sob a impressão de que micro-organismos não gostavam de calor ou frio extremos.
Ele afundou no sofá e ligou a TV. Cantos preencheram a sala: era algum novo ídolo pop. Um canal de Tóquio estava exibindo o mesmo programa exatamente agora. Ele mudou de canal. Entretanto, ele não pretendia assistir nada, então ajustou o volume para um nível adequado e abriu sua mochila. Ele pegou uma câmera de vídeo e a pôs sobre a mesa. Se algo estranho acontecesse, queria registrar em vídeo. Ele bebeu um bocado de whisky. Era apenas um pouco, mas reforçou sua coragem. Asakawa repetiu em sua mente tudo o que sabia. Se não conseguisse encontrar nenhuma pista aqui hoje, então o artigo que escreveria iria por água abaixo. Porém, por outro lado, talvez seja melhor assim. Se não encontrar nenhuma pista significasse não pegar o vírus, bem... ele tinha uma esposa e uma filha para se preocupar, afinal. Ele não queria morrer, ao menos não em uma forma estranha. Ele apoiou os pés sobre a mesa.
“Então, o que está esperando?” perguntou a si mesmo. “Não está com medo? Ei, você não deveria estar com medo? O anjo da morte pode estar vindo para buscá-lo.”
Seu olhar correu nervosamente pela sala. Asakawa não conseguia fixar seus olhos em nenhum ponto na parede. Sentia que se fizesse isso, seus medos começariam a tomar uma forma física enquanto observava.
Um vento arrepiante soprou para dentro, mais forte que antes. Ele fechou a janela e enquanto ia fechar as cortinas, acabou observando a escuridão no exterior. O telhado da B-5 estava diretamente diante dele, e em suas sombras, a escuridão era ainda mais profunda. Havia diversas pessoas nas quadras de tênis e no restaurante. Mas aqui, Asakawa estava sozinho. Ele fechou as cortinas e olhou para seu relógio. 20:56. Ele não esteve neste quarto nem por meia hora, mas sentia que poderia ter sido uma hora ou mais. Mas apenas estar aqui não deveria ser perigoso. Ele tentou acreditar nisto para acalmar-se. Afinal, quantas pessoas devem ter ficado na B-4 nos seis meses desde que estas cabanas foram construídas? Não é como se todas essas pessoas tenham morrido sob circunstâncias misteriosas. Apenas estes quatro, de acordo com sua pesquisa. Talvez encontrasse mais, caso continuasse investigando, mas parecia ser apenas isso, no momento. Sendo assim, simplesmente estar aqui não era o problema. O problema é o que fizeram aqui.
Então, o que fizeram aqui?
Asakawa subitamente reformulou a questão “O que poderiam ter feito aqui?”
Ele não encontrou nada que lembrasse uma pista — nem no banheiro, nem no box, nem no closet, nem no freezer. Mesmo presumindo que deveria haver algo, o gerente teria se livrado disto quando limpou o lugar. O que significava aqui, ao invés de sentar aqui bebendo whisky, ele deveria estar conversando com o gerente. Isso seria mais rápido.
Ele acabou com o primeiro copo; ele preparou o segundo um pouco menor, não poderia ficar embriagado. Ele pôs muito gelo, e desta vez diluiu com água da torneira. Seu sentido do perigo deve ter ficado um pouco entorpecido. Repentinamente, ele sentiu-se idiota: roubando tempo de seu trabalho, vindo até aqui... retirou seus óculos, lavou seu rosto, e olhou para seu reflexo no espelho. Era o rosto de um homem doente. Talvez já tenha pego o vírus. Engolindo o whisky-com-água que preparou, já estava pronto para preparar outro.
Retornando da sala de jantar, Asakawa notou um caderno na estante sob o telefone. A capa dizia “Lembranças”. Ele folheou algumas páginas.

Sábado, 7 de abril
Nonko nunca irá esquecer este dia. Por quê?
Isso é um se-gre-do. Yuichi é maravilhoso. Hehe!
-NONKO

Pousadas, Cama e Cafés, e coisas do tipo geralmente têm cadernos como este nos quartos, para que os clientes possam escrever suas lembranças e impressões. Na próxima página havia um desenho bruto de uma mãe e um pai. Deve ter sido uma viagem em família. Era datado de 14 de abril — naturalmente, outro sábado.

O papai é gordo,
A mamãe é gorda,
Então eu sou gordo também.
Catrose de abriu.

Asakawa continuou virando as páginas. Ele sentia algum tipo de força o apressando para ler as páginas do fim do livro, mas continuou seguindo-as em ordem. Ele temia perder algo se bagunçasse a cronologia.
Ele não poderia dizer com certeza, já que provavelmente vários clientes não escreveram nada, mas parecia que até o início do verão, havia pessoas aqui apenas nos sábados. Após isso, o tempo entre cada registro começou a diminuir. Até o fim de agosto, havia uma corrente estável de registros lamentando o fim do verão.

Domingo, 20 de agosto
Outras férias de verão que vieram, mas já foram embora. E foi horrível. Alguém me ajude! Salvem o pobre eu!
Eu tenho uma motocicleta, 400cc. Eu sou bem bonito.
Uma pechincha!
- A.Y.

Parece que esse cara decidiu que o livro de hóspedes era uma forma de fazer propaganda de si mesmo, talvez encontrar uma correspondente. Parecia que diversas pessoas tinham a mesma ideia sobre o lugar. Quando casais ficavam aqui, seus registros demonstravam isso, enquanto quando pessoas solteiras ficavam, escreviam sobre como queriam uma companhia.
Ainda assim, era uma leitura interessante. Atualmente, seu relógio indicava nove horas.
Então ele virou a página:

Quinta, 30 de agosto
Ugh! Considere-se avisado: é melhor não ver aquilo se não tiver coragem.
Se arrependerá se fizer isso. (Risada maligna.)
S. I.

A mensagem era apenas isso. 30 de agosto era a manhã após os quatro terem ficado aqui. As iniciais “S.I.” devem significar “Shuichi Iwata”. Seu registro foi diferente de todo o resto. O que isso significava? É melhor não ver aquilo. O que poderia ser aquilo? Asakawa fechou o livro de hóspedes e olhou para ele pelo lado. Havia um pequeno vão onde não fechou direito. Ele pôs seu dedo neste local e abriu nesta página. “Ugh! Considere-se avisado: é melhor não ver aquilo se não tiver coragem. Se arrependerá se fizer isso. (Risada maligna.) S. I.” As palavras saltaram nele. Por que o livro queria ser aberto nesta página específica? Ele pensou por um momento. Talvez os quatro tenham aberto o livro aqui e posto algo pesado sobre ele. O peso deixou essa força até agora, tentando abrir nesta página. E talvez o que eles colocaram sobre a página era “aquilo” que “era melhor não ver”. Só poderia ser isso.
Asakawa olhou ao redor ansiosamente, procurando em cada canto da estante sob o telefone. Nada. Nem mesmo um lápis.
Ele sentou-se no sofá e continuou a ler. O próximo registro era datado de sábado, primeiro de setembro. Mas dizia apenas as coisas de sempre.
Não dizia se o grupo de alunos que ficou aqui havia visto aquilo. Nenhuma das páginas restantes mencionaram isso, tampouco.
Asakawa fechou o livro e acendeu um cigarro. “É melhor não ver aquilo se não tiver coragem.” Ele imaginou que aquilo deve ser algo assustador. Ele abriu aleatoriamente o caderno e pressionou levemente a página. Seja o que for, deveria ser pesado o suficiente para superar a tendência das páginas a fecharem. Uma ou duas fotos de assombrações, por exemplo, não conseguiriam o efeito. Talvez uma revista, ou um livro de capa dura... Era algo que se olharia. Talvez ele fosse perguntar ao gerente se ele recordava encontrar algo estranho na cabana após os clientes do dia 30 de agosto saírem. Ele não tinha certeza de como o gerente poderia lembrar, mas pensou que se fosse estranho o suficiente, ele lembraria. Asakawa começou a se mover quando o videocassete diante dele chamou sua atenção. A TV ainda estava ligada, exibindo uma atriz famosa perseguindo seu marido com um aspirador de pó. Um comercial de eletrodomésticos.
“...Sim, uma fita de videocassete seria pesada o bastante para manter o caderno aberto, e deve ser uma útil, também.”
Ainda em um sofá, Asakawa descartou seu cigarro. Ele lembrou da coleção de filmes que vira no escritório do gerente. Talvez eles tenham assistido um filme de terror interessante, e pensaram em recomendar aos próximos hóspedes — ei, este é bom, assista. Se fosse apenas isso... Mas espere. Se fosse isso, por que Shuichi Iwata não disse o nome? Se ele queria contar a alguém, digamos, “Sexta-feira 13 foi um bom filme”, não seria mais fácil dizer apenas que “Sexta-feira 13 foi um bom filme? Ele não precisaria se dar ao trabalho de deixar sobre o caderno. Então talvez aquilo fosse algo que não tem um nome, algo que só pudessem indicar com a palavra aquilo. Então? Vale a pena checar?
Bem, ele certamente não tinha nada a perder, não sem outras pistas aparecendo. Além disto, ficar sentado aqui não o levaria a lugar algum. Asakawa deixou a cabana, subiu as escadas de pedra e abriu a porta do escritório.
Assim como antes, não havia sinal do gerente no balcão, apenas o som da televisão vindo da sala dos fundos. O homem deixou seu trabalho na cidade e decidiu viver seus anos cercado pela Mãe Natureza, então tomou o trabalho de gerente em um resort, mas o trabalho acabava sendo completamente entediante, e agora a única coisa que ele fazia o dia todo era assistir filmes. Era assim que Asakawa interpretava a situação do gerente. Contudo, antes que tivesse uma chance de chamar o homem, ele passou pela porta e pôs a cabeça para fora. Asakawa falou em um tom tanto quanto apologeticamente.
— Eu pensei em pegar um filme, no fim das contas.
O gerente sorriu alegremente. — Vá em frente, qual você quiser. São trezentos ienes cada[2].
Asakawa verificou o nome dos filmes que parecessem assustadores. A Casa da Noite Eterna, O Exorcista, A Profecia. Ele havia assistido todos esses em seus dias de estudante. “Não há mais nada?” Tem que haver algum que ele ainda não viu. Ele procurou de uma ponta da estante até a outra, e não encontrou nada parecido. Ele começou novamente, lendo o título de cada um dos quase duzentos filmes. E então, em uma das últimas prateleiras, em um canto, ele notou um filme sem capa, caído de lado. Todos os outros filmes estavam em capas com fotos e logotipos, mas neste faltava até mesmo uma etiqueta.
— O que é aquele? — após fazer a pergunta, Asakawa percebeu que usou um pronome, aquele, quanto apontou para a fita. Se não tinha um nome, do que mais poderia chamar?
O gerente franziu a testa, incomodado, e respondeu sem muita animação, — Hã? — e pegou a fita. — Isto? Isto não é nada.
...Me pergunto se esse cara ao menos sabe o que há nesta fita.
— O senhor já viu este? — perguntou Asakawa.
— Deixe-me ver — o gerente tombou sua cabeça repetidamente, como se não conseguisse entender o que algo assim fazia aqui.
— Se não se importar, posso pegar essa fita?
Ao invés de responder, o gerente bateu em seu joelho. — Ah, agora me lembro! Estava em um dos quartos. Eu imaginei que fosse uma das nossas e trouxe até aqui, mas...
— Isso não teria acontecido na B-4, suponho? — perguntou Asakawa lentamente, pressionando o ponto. O gerente riu e balançou a cabeça.
— Não tenho a menor ideia. Foi há alguns meses.
Asakawa perguntou mais uma vez, — O senhor... viu... o vídeo?
O gerente apenas balançou a cabeça. Seu sorriso havia desaparecido do rosto. — Não.
— Bem, eu quero alugá-la.
— Você vai gravar algo na TV?
— Sim, bem, eu, ah...
O gerente olhou para a fita. — A ponta está quebrada. Está vendo? Não pode gravar nada nela.
Talvez fosse por conta do álcool, mas Asakawa estava ficando irritado. “Estou dizendo para alugar isto, seu idiota, apenas me entregue logo”, queixou-se consigo mesmo. Mas não importa o quão embriagado estivesse, Asakawa nunca conseguia ser muito rígido com as pessoas.
— Por favor. Eu trarei de volta.
Ele curvou-se. O gerente não conseguia entender por que seu cliente estava demonstrando tanto interesse por esta coisa velha. Talvez tenha algo interessante nela, algo que alguém esqueceu de apagar... Agora ele desejava ter assistido quando encontrou. Sentiu a súbita tentação de assistir bem agora, mas não poderia recusar o pedido de um cliente. O gerente entregou a fita. Asakawa pegou sua carteira, mas o gerente o parou com suas mãos.
— Está tudo bem, não precisa pagar. Não posso cobrá-lo por isso, não é mesmo?
— Muito obrigado. Eu trarei de volta.
— Se for algo interessante, então, por favor! — a curiosidade do gerente fora pega. Ele já havia visto cada filme daqui ao menos uma vez, e a maioria havia deixado de lhe ser interessante. Mas como eu pude perder esse? “Poderia ter matado algumas horas. Ah, mas provavelmente era apenas algum programa de TV estúpido gravado.”
O gerente tinha certeza de que a fita voltaria bem depressa.




[1] Aproximadamente R$3,50 em maio/2019.
[2] Aproximadamente R$10,61 em maio/2019.


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