— Quando chega a esse ponto, nós
mulheres sempre levamos a pior, não é? Basicamente nos consideram suas servas —
murmurou Agatha enquanto rapidamente dava conta dos pratos. Orczy parou ao lado
dela, encarando seus dedos brancos e flexíveis habilmente fazendo seu trabalho,
até perceber que ela mesma não estava fazendo trabalho algum.
— Vamos deixar os garotos trabalharem
um pouco na cozinha também. Eles não podem pensar que estão livres só porque
nós duas estamos aqui. Não concorda?
— Seria hilário ver o Ellery usando um
avental e segurando uma concha com aquela expressão indiferente dele. Talvez
ele fique até fofo assim.
Agatha riu alegremente. Orczy
vislumbrou seu perfil roliço e suspirou.
Um rosto brilhante e um nariz
arredondado. Olhos que eram acentuados por um leve toque de sombra violeta.
Cabelo ondulado longo e bem cuidado.
Agatha era sempre animada e confiante.
Ela tinha uma personalidade quase masculina, mas ela estava bem consciente de
que era uma mulher. Ela parecia se agradar dos olhares que recebia dos homens
que se reuniam ao redor de sua beleza glamorosa.
Comparada a ela, eu sou apenas...
Um nariz pequeno e redondo. Bochechas infantis
vermelhas cobertas de sardas. Ela tinha olhos grandes, mas eles não tinham um
equilíbrio com o resto de seu rosto, o que fazia parecer que ela estava olhando
sem parar para os arredores. Mesmo que soubesse usar maquiagem como Agatha, ela
sabia com não combinaria com ela. Ela odiava sua própria timidez, sua
preocupação constante e o fato que, além de tudo isso, ela nunca tinha ideia do
que estava acontecendo ao seu redor.
Sempre fora assim. Agatha e ela, como
as únicas mulheres no grupo, inevitavelmente pareciam acabar juntas. Isso era
um peso enorme para ela.
Eu não deveria ter vindo. Ela havia começado a pensar assim.
Em primeiro lugar, ela não queria vir
para esta ilha. Parecia... desrespeitoso. Mas ela também era muito tímida para
rejeitar o convite de seus amigos.
— Orczy, que anel lindo — disse Agatha,
olhando para o dedo do meio esquerdo de Orczy. — Você sempre o teve?
— Não.
Orczy negou vagamente enquanto
balançava a cabeça.
— Foi um presente de alguém especial?
— Não, nada do tipo.
Orczy considerou cuidadosamente antes
de decidir vir para a ilha. A viagem não era uma intrusão: ela estava
respeitando. Eu irei para a ilha para demonstrar
meu respeito pelos mortos. E foi por isso que ela resolveu vir.
— Orczy, você é sempre assim, não é?
— ...O quê?
— Sempre guarda seus pensamentos para
si. Nós nos conhecemos há dois anos e eu ainda sinto que não sei nada sobre
você. Não que esteja errado, mas ainda assim, é muito estranho.
— Estranho?
— Sim. Eu sinto isso às vezes quando
leio as histórias que você escreve para a revista do clube. Você é sempre tão
vívida e brilhante em suas histórias.
— É porque é um mundo inventado.
Orczy desviou os olhos do olhar de
Agatha e sorriu incomodamente.
— Eu não sou boa com a realidade. Eu
odeio meu eu real. Eu não gosto de mim mesma.
— O que está dizendo? — Agatha riu e
correu os dedos pelos cabelos curtos e elegantes de Orczy. — Você precisa
confiar mais em si mesma. Sabe, você é fofa. Você só não sabe disso. Não fique
de cabeça baixa tanto tempo, seja orgulhosa.
— Você é uma boa pessoa, Agatha.
— Vamos limpar esta bagunça logo e
almoçar, tudo bem?
*
Ellery, Leroux e Van ainda estavam nas
ruínas da Mansão Azul. Poe foi ao arvoredo do outro lado do edifício queimado
sozinho.
— Ellery, e você também, Van. Ficaremos
aqui por sete dias, então eu gostaria de perguntar a vocês...
Por trás de seus óculos redondos
cômicos de armação prateada — embora ele mesmo não achasse cômico — os olhos de
Leroux estavam brilhando.
— Não digo cem páginas, mas me deem ao
menos cinquenta.
— Vo-você está brincando, não é?
— Eu estou sempre sério, Ellery.
— Mas isso é completamente repentino.
Nós não viemos escrever, não concorda, Van?
— Eu estou com o Ellery.
— Mas eu já expliquei mais cedo. Eu
quero publicar a nova edição de Ilha dos
Mortos um pouco mais cedo que o usual, por volta do meio de abril. Podemos
usá-la para atrair novos membros, e também seria uma edição especial para
comemorar o décimo aniversário do nosso Clube de Mistério. Eu serei o novo
editor-chefe em breve, então quero dar o meu melhor. Não posso aparecer com uma
revista de clube fraca na primeira edição do meu novo trabalho.
Leroux, um aluno do segundo ano na faculdade
de literatura, tomaria o papel de editor-chefe da revista Ilha dos Mortos do clube a partir de abril.
— Mas, Leroux...
Ellery pegou um novo maço de cigarros
Salem do bolso de sua camisa vermelho-vinho e removeu o selo. Ellery estava no
terceiro ano da faculdade de direito. Ele também era o atual editor-chefe de Ilha dos Mortos.
— ...Carr é quem você precisa bajular.
Não irei comentar sobre o conteúdo, mas ele é o escritor mais produtivo do
Clube de Mistério. Desculpe. Van, poderia me emprestar um isqueiro?
— Não é sempre que vocês falam mal um
do outro.
— Não é minha culpa. Carr começou.
— Agora que você mencionou isso, Carr
parece estar de mau humor — disse Leroux. Ellery riu um pouco e soprou fumaça
de sua boca.
— Ele tem motivo para estar.
— Que motivo?
— Há um tempo, nosso pobre Carr tentou
cantar a Agatha e foi imediatamente rejeitado.
— Ele foi atrás da Dama Agatha? Uau,
ele tem coragem.
— E... Acho que foi por impulso, mas
depois ele tentou a sorte com Orczy, mas até mesmo ela não queria assunto com
ele.
— Orczy...
Van franziu a testa.
— Sendo assim, nosso grande autor não
está animado.
— Bem, é claro que ele não estaria. Sob
o mesmo teto que duas garotas que o rejeitaram.
— Exatamente. Então, meu caro Leroux,
se você quiser algo do Carr, terá que ter lábia.
Neste momento eles viram Agatha
voltando da direção da Casa Decagonal. Ela parou sob o arco de pinheiros pretos
e agitou seu braço para os três homens.
— O almoço está pronto... onde estão
Poe e Carr? Não estavam juntos?
*
O caminho curto entre os pinheiros do
arvoredo atrás da Casa Decagonal.
Ele começou ao lado para vislumbrar os
penhascos da costa leste, mas o caminho ficou cada vez menor enquanto ele
prosseguia. Também era cheio de curvas e voltas, então ele não havia seguido
nem cinquenta metros quando perdeu seu senso de direção.
Era um arvoredo sombrio.
Os longos brotos de bambu sasa que cresciam entre os pinheiros prendiam-se
em nas roupas dele a cada passo. Além disso, o chão era desnivelado e ele quase
tropeçou diversas vezes.
Ele considerou retornar, mas também não
sentia essa vontade. Era uma ilha pequena. Não havia a possibilidade de se
perder e não encontrar o caminho de volta.
O colarinho do suéter de gola alta que
vestia sob sua jaqueta estava ficando encharcado de sua transpiração. Logo
assim que começou a se tornar insuportável, o caminho o levou para fora do
arvoredo.
Ele estava no topo dos penhascos. O reflexo
ofuscante da água cegava seus olhos. E um homem grande estava lá de pé, olhando
o mar — era Poe.
— Hum? Ah, é você, Carr.
Poe virou-se ao ouvir o som de passos,
mas quando viu que era Carr, voltou a olhar para o mar.
— Esta é a costa norte da ilha. Acho
que a Ilha do Gato é aquela lá.
Ele apontou para uma ilha próxima.
Considerando seu tamanho, poderia ser
chamada de recife. Apenas alguns arbustos cresciam no chão ondulante elevado.
Como o nome sugeria, lembrava um animal escuro agachado no mar.
Olhando para a ilha, Carr assentiu
brevemente.
— O que houve, Carr? Por que essa cara desapontada?
— Heh, estou começando a me arrepender
de ter vindo.
Com uma carranca no rosto, Carr começou
a reclamar.
— Só porque algo aconteceu no ano
passado, não quer dizer que há algo interessante aqui agora. Eu vim pensando
que isso poderia ajudar a estimular minha imaginação, mas agora só de pensar
que irei ver os mesmos rostos todos os dias durante uma semana... Você deveria
estar desapontado também.
Assim como Ellery, Carr era um aluno do
terceiro ano da faculdade de direito. Mas como Carr falhou nos exames de
admissão no primeiro ano, ele na verdade tinha a mesma idade que Poe, que
estava um ano escolar acima dele.
Carr tinha altura e corpo medianos. Mas
ele parecia menor do que era porque andava inclinado e tinha um pescoço curto.
— E o que você faz sozinho em um lugar
como esse?
— Nada em particular.
Poe estreitou seus olhos que já eram pequenos
sob suas sobrancelhas grossas. Ele pegou um cigarro do estojo de madeira de
bétula que ficava pendurado em sua cintura como uma casamata tradicional, e o
pôs em sua boca. Ele estendeu o estojo a Carr.
— Quantas caixas você trouxe?
Oferecendo cigarros aos outros assim quando você também é um grande fumante.
— Eu só gosto de fumar. Embora eu
estude medicina.
— E sempre cigarros Lark. Não uma marca
para intelectuais.
Mesmo com seu comentário, Carr ainda
aceitou a oferta.
— Mas pelo menos são melhores que as mentol
do jovem Mestre Ellery.
— Carr, você não devia ficar irritado
sempre por causa de Ellery assim. Suas brigas são um incômodo para nós também,
sabe? Mesmo que você tente entrar em uma briga com ele, ele só irá rir e zombar
de você por isso.
Carr usou seu próprio isqueiro no
cigarro e virou-se.
— Vejam só quem está falando.
Poe não parecia se importar. Ele desfrutou
de seu cigarro em silêncio.
Após um tempo, Carr jogou seu Lark
fumado pela metade no mar. Ele se sentou em uma pedra próxima e pegou um frasco
de whisky. Ele abriu a tampa e tomou um gole.
— Beber álcool durante o dia?
— Não é da sua conta.
— Não posso dizer que aprovo.
O tom de Poe ficou rígido.
— Você deveria beber menos. Não apenas
durante o dia, mas...
— Hah. Você ainda está pensando naquilo?
— Sim, então você entende—
— Não, eu não entendo. Quanto tempo já
se passou? Não podemos continuar pensando no que aconteceu.
Ignorando o olhar silencioso e
reprovador de Poe, Carr tomou outro gole.
— Não é apenas Ellery que me incomoda.
E quanto ter mulheres aqui em uma ilha inabitada?
— Pode ser inabitada, mas não estamos
em uma viagem de sobrevivência.
— Hm. Mesmo assim, eu não gosto de
ficar sozinho com alguém tão arrogante quanto a Agatha. E também tem a Orczy.
Nós sete nos tornamos de alguma forma o que vocês chamam de “um grupo próximo”
nesses últimos dois anos, então não posso dizer isso alto, mas aquela garota é
toda melancólica e não vale absolutamente nada, além do mais ela é muito autoconsciente
sobre si mesma.
— Agora você está procurando defeitos.
— Ah, eu esqueci que a Orczy e você são
amigos desde pequenos.
Azedamente, Poe apagou o cigarro sob
seu pé. Como se acabasse de lembrar, ele olhou para seu relógio de pulso.
— Já são uma e meia. Se não voltarmos
logo, não iremos almoçar.
*
— Antes de comermos, tenho um anúncio a
fazer.
Usando delicados óculos de armação
dourada, Ellery falou para o grupo.
— Nosso próximo editor-chefe tem algo
para dizer a todos nós.
O almoço já estava posto na mesa decagonal.
Bacon e ovos, uma salada simples, baguetes e café.
— Hmm, sinto muito interromper sua
refeição. Gostaria de me apresentar como o novo editor-chefe... — disse Leroux,
tenso e tossindo para limpar a garganta.
— Nós conversamos sobre vir para a Casa
Decagonal na festa de Ano Novo do clube. É claro, ninguém imaginou que isso
realmente aconteceria naquele momento. Mas então Van nos disse que o tio dele adquiriu
posse da ilha e nos convidou.
— Não é como se eu tivesse convidado
vocês. Eu só disse que poderia perguntar ao meu tio se vocês realmente quisessem
vir.
— Não seja modesto. Enfim, como todos
vocês sabem, o tio do Van é um corretor de imóveis na Cidade S—. Ele também é
um talentoso empresário e tem grandes planos para transformar Tsunojima em uma
ilha de lazer para os jovens. Certo, Van?
— Não acho que os planos dele sejam tão
grandes.
— Enfim, nós estamos aqui hoje como uma
forma de equipe de testes também. Van veio esta manhã para fazer os
preparativos para nossa estadia, então devemos agradecê-lo primeiro. Nós realmente
apreciamos isso.
Leroux curvou-se profundamente para Van.
— E agora, meu maior anúncio—
— O bacon e os ovos estão esfriando — interrompeu
Agatha.
— Estou quase terminando... ah, de que
importa? A comida vai esfriar. Por favor, almocem enquanto eu falo.
— O talento de todos reunidos aqui
foram reconhecidos pelos nossos seniores do clube — que já se graduaram — e nós
sete herdamos seus nomes. Esta é uma reunião do grupo do núcleo escritor do nosso
Clube de Mistério.
Era uma tradição do Clube de Mistério
da Universidade K— desde sua fundação que os membros do clube chamassem uns aos
outros por apelidos. Há dez anos, os membros fundadores decidiram dar nomes de
escritores famosos do Reino Unido, França e Estados Unidos a todos como apelidos,
uma ideia nascida da infantilidade inata dos fãs da ficção de mistério. É
claro, com o número de membros crescendo a cada ano, cada vez menos nomes
sobravam. A solução para este problema era “herdar os nomes”, um sistema onde
os membros que graduassem passavam seu nome para um membro júnior de sua
escolha.
Com o tempo, os sucessores dos nomes
passaram a ser escolhidos com base em suas contribuições para a revista do
clube. Sendo assim, cada um dos sete presentes que possuíam um apelido e eram
considerados o núcleo do clube e frequentemente se reuniam para diversas ocasiões.
— ...esses membros de alto nível
ficarão aqui nesta ilha por uma semana, começando agora, com nada para distraí-los.
Cada um pode usar o tempo da melhor forma possível.
Leroux olhou para todos na sala.
— Eu trouxe papéis de escrita comigo, então
pedirei que cada um de vocês escreva uma estória para a revista do clube que
será lançada em abril.
— Ah! — gritou Agatha. — Então é por
isso que você tinha tanta bagagem. Você estava planejando isto!
— Sim, este é meu plano. Agatha, e você
também, Orczy, por favor escrevam algo.
Leroux curvou-se brevemente e coçou suas
bochechas redondas, com um risinho. Ele parecia uma daquelas sortudas bonecas Fukusuke[1],
porém, com óculos. Sorrisos amarelos surgiram no rosto dos membros do grupo.
— Você deve conseguir apenas estórias de
“assassinatos em uma ilha remota”, Leroux. O que fará então? — Poe perguntou.
Leroux estufou o peito.
— Então eu direi que é o tema desta
edição. Ou então, vamos usar este tema deste o início. Será ainda melhor. O
título da revista, Ilha dos Mortos[2],
foi tirado da primeira tradução japonesa para a obra-prima da Dama Agatha,
afinal.
Ellery, que estava apoiado em seus
cotovelos, sussurrou para Van ao seu lado: “Temo que tenhamos subestimado nosso
novo editor-chefe.”
[1] Fukusuke
são bonecas de porcelana tradicionais japonesas associadas à boa sorte.
[2] O
livro “E Não Sobrou Nenhum, de 1939, foi serializado pela primeira vez no Japão
no mesmo ano sob o nome de Shinijima (Ilha
dos Mortos), traduzido por Shimizu Shunji (1906-1988).
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