Shizu
estava vendo seus pais pela primeira vez em um mês. Desde que sua neta Tomoko
faleceu, eles vinham para Tóquio de sua casa em Ashikaga sempre que podiam, não
apenas para consolar sua filha, mas para serem consolados também, em retorno. Shizu
apenas entendeu isso hoje. Seu coração doía sempre que via os rostos magros e abalados
pelo luto. Eles já tiveram três netos: Tomoko, a mais filha de Yoshimi, a filha
mais velha; Kenichi, o filho de Kazuko, a segunda filha; e Yoko, filha de Shizu.
Um neto para cada uma das três filhas — não era tão comum. Tomoko fora sua primeira
neta, e um sorriso enrugado se formava em seus rostos cada vez que a viam; eles
gostavam de mimá-la. Agora estavam tão depressivos que era impossível dizer o
luto de quem era maior, dos pais ou dos avós.
Parecia
que netos realmente significam muito.
Shizu
completou trinta anos neste ano. Tudo o que ela poderia fazer para imaginar o
que sua irmã estava sentindo era se pôr no lugar dela, imaginando como se
sentiria se perdesse sua própria filha. Mas era impossível comparar sua filha
Yoko, de apenas um ano e meio, e Tomoko, que faleceu com dezessete anos. Ela
não conseguia medir o quanto seu amor por sua filha cresceria a cada ano que
passasse.
Algum
tempo após as três da tarde, seus pais começaram a se aprontar para voltar para
sua casa em Ashikaga.
Shizu
mal conseguia conter sua surpresa. Por que seu marido, que sempre reclamava
sobre estar muito ocupado, sugeriu esta visita à casa de sua irmã? Era o mesmo
marido que faltara ao funeral da própria garota, alegando ter um prazo a
cumprir. E agora já era quase a hora do jantar, ele não demonstrava a menor
inclinação em querer sair. Certamente ele não estava se sentindo detido pelas
memórias da falecida.
Shizu
cutucou Asakawa levemente no joelho e sussurrou em seu ouvido, — Querido, provavelmente
já está na hora...
—
Veja a Yoko. Ela está adormecendo. Talvez devêssemos perguntar se ela poderia
tirar uma soneca aqui.
Eles
trouxeram sua filha. Normalmente, era a hora da soneca. Como se para confirmar,
Yoko começou a piscar como sempre fazia quando estava com sono. Mas se a
deixarem dormir aqui, teriam que ficar nesta casa por pelo menos mais duas
horas. Que assunto encontrariam para conversar com sua irmã em luto e o marido dela
por mais duas horas?
—
Ela pode dormir no trem, não acha? — disse Shizu, abaixando o volume da voz.
—
Na última vez que tentamos fazer isso ela ficou nervosa, e foi horrível até
chegarmos a casa. Não, obrigado.
Sempre
que Yoko caía no sono em um lugar cheio, ficava inacreditavelmente inquieta. Ela
agitava seus pequenos braços e pernas, gritava a plenos pulmões, e geralmente deixava
a vida mais difícil para seus pais. Repreendê-la apenas deixava tudo pior — não
havia como acalmá-la exceto tentar fazê-la dormir. Em momentos assim, Asakawa
ficava intensamente atento aos olhares das pessoas ao redor dele, e começava a
ficar de mau humor também, como se fosse a principal vítima das pirraças de sua
filha. Os olhares acusadores dos outros passageiros sempre o faziam sentir-se
sufocado.
Shizu
preferia não ver seu marido neste estado, com as bochechas tremendo
nervosamente e todo o resto, — Tudo bem, então, se é o que você diz.
—
Ótimo. Vamos ver se ela tira uma soneca lá no andar de cima.
Yoko
estava deitada no colo de sua mãe, com os olhos semifechados.
—
Eu vou pô-la para baixo — disse ele, acariciando as bochechas de sua filha com
as costas de sua mão. As palavras soaram estranhas vindo de Asakawa, que
raramente ajudava com o bebê. Talvez ele tenha mudado de atitude, agora que viu
a tristeza de pais que perderam uma filha.
—
O que aconteceu com você hoje? Está me assustando.
—
Não se preocupe. Ela parece que vai se acalmar. Deixe comigo.
Shizu
entregou a criança. — Obrigada. Eu gostaria que você fosse assim o tempo todo.
Conforme
foi transferida do seio de sua mãe ao colo de seu pai, Yoko começou a retorcer
o rosto, mas antes que tivesse tempo de continuar com isso, ela caiu no sono.
Asakawa subiu as escadas, embalando sua filha. O segundo andar consistia de dois
quartos de estilo japonês e o quarto de estilo ocidental, que era de Tomoko.
Ele deitou Yoko no futon do quarto de estilo japonês que ficava ao sul. Ele nem
mesmo precisou ficar com ela quando ela adormeceu. Ela já estava dormindo, sua
respiração estava regular.
Asakawa
saiu do quarto e ouviu o que estava acontecendo no andar abaixo, e então entrou
no quarto de Tomoko. Ele se sentiu um pouco culpado por invadir a privacidade
de uma garota morta. Isso não era o tipo de coisa que ele abominava? Mas era
por uma boa — derrotar o mal. Não havia outra escolha senão isso. Mesmo
enquanto pensava isso, ele odiava a forma que sempre estava disposto a
aproveitar qualquer motivo, não importa o quão ilusório, com a intenção de
racionalizar suas ações. Mas, ele protestou, não era como se ele estivesse
escrevendo um artigo sobre isso: ele estava apenas tentando descobrir quando e
onde os quatro estavam juntos. Desculpe.
Ele
abriu as gavetas da mesa. Apenas uma seleção normal de suprimentos
estacionários, como qualquer garota do colegial teria, completamente
organizado. Três fotos, uma caixa de lixo, cartas, um bloco de notas, um conjunto
de costura. Os pais dela mexeram aqui após ela morrer? Não parecia ser o caso.
Provavelmente ela era naturalmente organizada. Ele estava esperando encontrar
um diário — lhe pouparia bastante tempo. Hoje
eu me encontrei com Haruko Tsuji, Takeshiko Nomi e Shuichi Iwata, e nós...
Se ao menos ele encontrasse algo assim... Ele pegou um caderno de sua prateleira
de livros e folheou-o. Ele de fato havia encontrado um diário bem feminino no
fundo de uma gaveta, mas havia apenas alguns comentários desordenados nas
primeiras páginas, todos datados de muito tempo atrás.
Na
estante ao lado da mesa não havia livros, apenas uma bancada vermelha florida
de maquiagem. Ele abriu a gaveta. Um monte de acessórios baratos. Diversos brincos
sem os pares — parecia que ela tinha o hábito de perder um de cada par que
usava. Um pente de bolso com vários fios de cabelo pretos ainda enrolados nele.
Abrindo
o armário embutido, seu nariz foi atacado pelo cheiro de garotas do colegial. Estava
repleto de vestidos coloridos e saias em cabides. Sua cunhada e o marido dela
obviamente não pensaram no que fazer com essas roupas, ainda com a fragrância
de sua filha. Asakawa apurou os ouvidos para ouvir o que acontecia no andar
abaixo. Ele não sabia o que pensariam se o pegassem aqui. Não havia som. Sua
esposa e a irmã dela devem estar conversando sobre alguma coisa. Asakawa
procurou pelos bolsos das roupas no guarda-roupa um por um. Lenços, ingressos
de cinema, embalagens de chiclete, guardanapos, uma carteira. Ele examinou: um
passe para o trecho entre Yamate e Tsurumi, um cartão de identificação escolar,
e um cartão de filiação. Havia um nome escrito no cartão de filiação: Alguma-coisa
Nonoyama. Ele não sabia como pronunciar os caracteres do primeiro nome — Yuki, talvez?
Apenas pelos caracteres ele não conseguia saber se era um homem ou uma mulher.
Por que ela tinha o cartão de outra pessoa em sua carteira? Ele ouviu passos
subindo as escadas. Ele jogou o cartão em seu bolso, colocou a carteira de
volta onde encontrou e fechou o guarda-roupa. Ele caminhou pelo corredor assim
que sua cunhada alcançou o fim das escadas.
—
Desculpe, tem algum banheiro aqui em cima? — Ele fingiu estar um pouco
inquieto.
—
Fica no fim do corredor. — Ela não parecia ter desconfiado de nada. — A Yoko
está dormindo como uma boa garota?
—
Sim, obrigado. Sinto muito por incomodá-la tanto.
—
Ah, não, nada disso. — A cunhada se curvou brevemente, e então entrou no quarto
de estilo japonês, com as mãos na faixa de seu kimono.
No
banheiro, Asakawa pegou o cartão. Lia-se “Cartão de Filiação do Clube Resort do
Pacífico”. Sob isso havia o nome e número de membro de Nonoyama e a data de
validade. Ele virou o outro lado. Cinco cláusulas de filiação, em ótima gravura,
mais o nome da empresa e o endereço. Clube Resort do Pacífico, Inc., Kojimachi
3-5, Chiyoda, Tóquio. Telefone de contato (03) 261-4922. Se não fosse algo que
ela encontrou ou furtou, Tomoko deve ter pego este cartão emprestado com essa
pessoa chamada Nnonoyama. Por quê? Para usar as instalações do Resort do
Pacífico, é claro. Qual, e quando?
Ele
não poderia ligar da casa. Dizendo que iria sair para comprar cigarros, ele
correu para um telefone público. Ele discou o número.
—
Alô, Resort do Pacífico, posso ajudar? — era a voz de uma jovem mulher.
—
Eu quero saber quais instalações eu poderia usar com um cartão de filiação.
A
voz não respondeu de imediato. Talvez existam tantas instalações disponíveis
que ela não conseguiria listar todas.
—
Bem... quero dizer... por exemplo, como uma viagem noturna de Tóquio — complementou.
Chamaria a atenção se os quatro tivessem sumido por duas ou três noites juntos.
O fato de não ter descoberto nada sobre isso até agora significava que eles
provavelmente não ficaram mais que uma única noite fora. Ela poderia facilmente
escapar por uma única noite mentindo para seus pais que iria estudar na casa de
uma amiga.
—
Nós temos uma gama completa de nossas instalações na nossa Terra do Pacífico em
Hakone do Sul. — disse em sua forma formal de negócios.
—
Especificamente, que tipo de atividades de lazer vocês têm?
—
Certamente, senhor. Nós temos provisões para golfe, tênis e esportes de campo,
assim como uma piscina de natação.
—
E vocês têm um alojamento?
—
Sim, senhor. Em adição ao hotel, a Terra do Pacífico conta com a comunidade de
casas de aluguel Vila Cabana. Devo lhe enviar nosso folheto?
—
Sim. Por favor. — Ele fingiu ser um futuro cliente, esperando que fosse mais
fácil extrair informações dela. — O hotel e as cabines são abertos ao público
em geral?
—
Certamente, até mesmo para não-membros.
—
Entendo. Poderia me dar o telefone de contato? Talvez eu vá dar uma olhada.
—
Eu posso fazer as reservas agora, se o senhor desejar...
—
Não, eu, hum, devo dirigir por aí algum dia para decidir dar uma olhada...
Então poderia me dar apenas o telefone?
—
Um minuto, por favor.
Enquanto
esperava, Asakawa pegou um bloco de notas e uma caneta.
—
Tudo pronto? — A mulher retornou e ditou os dois números de onze dígitos. Os
códigos de área eram longos — ficavam bem dentro do campo. Asakawa anotou-os.
—
Apenas para referência futura, onde são localizadas as outras instalações?
—
Temos o mesmo tipo de resorts de serviço completo no Lago Hamana e em Hamajima
no Distrito Mie.
Muito
mais longe! Estudantes não teriam todo esse trabalho.
—
Entendo. Parece que ficam todos no Oceano Pacífico, assim como o nome sugere.
Então
a mulher começou a detalhar as fabulosas vantagens de se tornar um membro do Clube
Resort do Pacífico; Asakawa ouvia educadamente por um momento antes de
cortá-la. — Ótimo. O restante tenho certeza que encontrarei no panfleto. Eu lhe
darei meu endereço para que você possa enviar. — Ele disse à ela seu endereço e
desligou. Ouvindo a conversa de vendedora dela, ele começava a pensar que na
verdade não seria tão ruim se tornar um membro, caso pudesse pagar.
Já
fazia mais de uma hora desde que Yoko fora dormir, e os pais de Shizu já
voltaram para Ashikaga. Shizu estava na cozinha preparando a comida para sua
irmã, que ainda estava propensa a desmoronar à menor provocação. Asakawa vivamente
ajudou a carregar os pratos da sala de estar.
—
O que deu em você hoje? Você está agindo estranho — disse Shizu, sem
interromper o trabalho que fazia ao lavar os pratos. — Você colocou a Yoko para
dormir, agora está ajudando na cozinha. Está virando uma nova página na sua
vida? Se for isso, espero que seja para valer.
Asakawa
estava perdido em seus pensamentos, e não queria ser incomodado. Ele queria que
sua esposa ficasse do jeito que seu nome sugeria, cujo significado era “quieta”.
A melhor forma de selar a boca de uma mulher era não a responder.
—
Ah, falando nela, você colocou uma fralda antes que ela dormisse? Não iríamos
querer que ela sujasse a casa de alguém.
Asakawa
não demonstrou interesse algum, mas apenas olhou para as paredes da cozinha.
Tomoko morrera ali. Havia fragmentos de vidro e uma poça de Coca-cola próxima a
ela quando fora encontrada. Ela deve ter sido atacada pelo vírus logo assim que
foi beber o refrigerante que estava no refrigerador. Mimicando os movimentos de
Tomoko, Asakawa abriu o refrigerador. Ele se imaginou segurando uma bebida, e
fingiu bebê-la.
—
Que diabos está fazendo? — Shizu estava encarando-o, com a boca escancarada. Asakawa
prosseguiu: continuando a fingir beber o refrigerante, ele olhou para trás. Quando
virou-se, havia uma porta de vidro diante dele, separando a sala de estar da
cozinha. Refletia a lâmpada fluorescente sobre a pia. Talvez porque ainda
estivesse claro do lado de fora e a sala de estar estivesse coberta por luz,
apenas refletiu a lâmpada fluorescente, e não a expressão das pessoas deste
lado. Se o outro lado do vidro estivesse escuro, e este lado, claro, como na
noite em que Tomoko estivera de pé aqui... Aquela porta de vidro seria um
espelho que refletia a cena na cozinha. Refletiria o rosto de Tomoko,
contorcido de terror. Asakawa quase conseguia começar a pensar no pano de vidro
como testemunha de tudo o que aconteceu. Vidro poderia ser transparente ou
refletor, dependendo da relação entre luz e escuridão. Asakawa estava
aproximando seu rosto do vidro, como se atraído a ele, quando sua esposa o
tocou nas costas. Naquele exato momento, eles ouviram Yoko chorando no andar de
cima. Ela havia acordado.
—
A Yoko acordou. — Shizu secou suas mãos em uma toalha. Sua filha geralmente não
chorava tanto ao acordar. Shizu correu até o segundo andar.
Enquanto
estava saindo, Yoshimi estava entrando. Asakawa a entregou o cartão que
encontrara. “Isto estava caído sob o piano.” Falou casualmente e esperou por
uma reação.
Yoshimi
pegou o cartão e virou-o. — Que estranho. O que isto estava fazendo lá? — Ela
tombou a cabeça, confusa.
—
Você acha que a Tomoko poderia ter pego emprestado com um amigo?
—
Mas eu nunca ouvi falar nesta pessoa. Não acho que ela tivesse algum amigo com
este nome — Yoshimi olhou para Asakawa com preocupação exagerada. — Droga. Isso
parece tão importante. Eu juro, aquela garota... — A voz dela engasgou. Até
mesmo a menor das coisas começava a mover as engrenagens de seu luto. Asakawa
hesitou em perguntar, mas o fez.
—
Teria, ah... teria a chance da Tomoko e os amigos dela terem ido a este resort durante
as férias de verão?
Yoshimi
balançou a cabeça. Ela confiava em sua filha. Tomoko não era do tipo que
mentiria sobre estar na casa de alguma amiga. Além disso, ela estava estudando
para os exames. Asakawa conseguia entender como Yoshimi sentia-se. Ele decidiu
não perguntar mais além sobre Tomoko. Nenhuma aluna do colegial com os exames
se aproximando iria dizer a seus pais que estava alugando uma cabana com seu
namorado. Ela teria mentido e dito que estudaria na casa de uma amiga. Seus
pais nunca saberiam.
—
Eu encontrarei a pessoa a quem isto pertence e irei devolver.
Yoshimi
curvou a cabeça em silêncio, então seu marido a chamou da sala de estar e ela
correu da cozinha. O desolado pai estava sentado diante de um recém-instalado
altar budista, conversando com a fotografia de sua filha. Sua voz estava
chocantemente alegre, e Asakawa ficou deprimido. Ele obviamente estava vivendo
em negação. Asakawa apenas poderia rezar para que ele conseguisse superar tudo
isso.
Asakawa
descobriu uma coisa. Se esta pessoa chamada Nonoyama havia, de fato, emprestado
o cartão de filiação à Tomoko, ele ou ela teria contatado os pais dela para
pedir seu cartão de volta após saber sobre sua morte. Mas a mãe de Tomoko não sabia
nada sobre o cartão. Nonoyama não poderia ter esquecido sobre o cartão. Mesmo
que seja parte de um acordo de filiação de família, os direitos eram muito
caros para que Nonoyama simplesmente deixasse o cartão se perder. Então, o que
isso significava? Tal foi a dedução de Asakawa: Nonoyama emprestou o cartão para
um dos três, seja Iwata, Tsuji ou Nomi. De alguma forma, ele foi parar na posse
de Tomoko, e as coisas terminaram assim. Nonoyama teria contatado os pais da
pessoa a quem ele ou ela havia emprestado. Os pais procurariam nas coisas de
seus filhos. Eles não encontrariam o cartão. O cartão estava aqui. Se Asakawa
contatasse as famílias das outras três vítimas, talvez fosse capaz de conseguir
o endereço de Nonoyama. Ele deveria ligar hoje mesmo, à noite. Se não
conseguisse desenterrar uma pista desta forma, então seria improvável que o
cartão servisse como meio de encontrar quando e onde os quatro estiveram
juntos. De qualquer forma, ele queria encontrar Nonoyama e ouvir o que ele ou
ela teria para dizer. Se fosse necessário, ele poderia conseguir uma forma de
rastrear o endereço de Nonoyama baseado em seu número de membro. Perguntar no
Resort do Pacífico diretamente provavelmente não o levaria a lugar algum, mas
ele estava certo que seus contatos do jornal poderiam lhe ajudar com algo.
Alguém
estava chamando-o. Uma voz distante. “Querido... querido...” a voz afobada de
sua esposa mesclada ao choro do bebê.
—
Querido, poderia vir aqui por um minuto?
Asakawa
voltou a si. Repentinamente ele não sabia mais no que ele mesmo estava pensando
todo este tempo. Havia algo estranho na forma que sua filha estava chorando.
Aquela sensação se tornou mais forte conforme ele subia as escadas.
—
O que houve? — perguntou à sua esposa, acusadoramente.
—
Há algo de errado com a Yoko. Acho que aconteceu alguma coisa com ela. A forma que
ela está chorando... é diferente de como geralmente soa. Você acha que ela está
doente?
Asakawa
posicionou suas mãos na testa de Yoko. Ela não tinha febre. Mas suas mãozinhas
estavam tremendo. O tremor espalhou por todo o seu corpo, e as vezes suas
costas agitavam-se. Seu rosto estava vermelho como um tomate, seus olhos
firmemente fechados.
—
Há quanto tempo ela está assim?
—
É porque ela acordou e não havia ninguém com ela.
O
bebê frequentemente chorava se sua mãe não estivesse lá quando ela acordasse.
Mas sempre se acalmava quando a mãe corria até ela e a segurava. Quando um bebê
chorava, estava começando a pedir algo, mas o quê...? O bebê estava tentando
lhes dizer algo. Ela não estava apenas sendo pirracenta. Suas mãozinhas estavam
bem apertadas contra seu rosto... encolhida. Era isso. A criança estava gemendo
de medo. Yoko virou seu rosto e então, abriu um pouco seus punhos: ela parecia
estar tentando apontar para a frente. Asakawa olhou naquela direção. Havia uma
coluna. Ele levantou o olhar. Pendurada a cerca de trinta centímetros do teto
estava uma máscara, do tamanho de um punho, de uma hannya[1]
— um demônio feminino. A criança estava com medo da máscara?
—
Ei, olhe — disse Asakawa, apontando com seu queixo. Eles olharam para a máscara
simultaneamente, e então voltaram seu olhar um ao outro lentamente.
—
Não pode ser... ela está com medo de um demônio?
Asakawa
se levantou. Ele puxou a máscara de demônio de onde estava pendurada e a pôs com
a face para baixo sobre o guarda-roupa. Yoko não conseguiria vê-la de lá. Ela abruptamente
parou de chorar.
—
O que houve, Yoko? Aquele demônio sórdido a assustou? — Shizu parecia aliviada
agora que finalmente entendeu, e contentemente roçou sua bochecha contra a da
criança. Asakawa não estava tão facilmente satisfeito; por algum motivo, ele
não queria mais ficar neste quarto.
—
Ei. Vamos para casa — ele apressou a esposa.
Naquela
noite, logo assim que chegou a casa após partir dos Oishis, ele ligou para os Tsujis,
os Nomis e os Iwatas, em respectiva ordem. Ele perguntou à cada família se
foram contatados por um conhecido de seus filhos sobre um cartão de filiação de
um resort. A última pessoa com quem falou, a mãe de Iwata, deu-lhe uma longa e
errante resposta: “Houve uma ligação de alguém que disse ter ido ao mesmo
colegial que meu filho, um garoto mais velho, dizendo que emprestou ao meu
filho seu cartão de filiação do resort, e perguntou se poderia pegar de
volta... Mas eu procurei em cada canto do quarto do meu filho e não consegui
encontrar. Estava preocupada com isso desde então.” Ele rapidamente pediu o número
do telefone de Nonoyama, e imediatamente ligou para ele.
Nonoyama
encontrara Iwata em Shibuya no último domingo de agosto e o emprestou seu cartão,
assim como Asakawa suspeitava. Iwata disse a ele que iria com a garota do
colegial com quem estava flertando. As
férias de verão estão quase acabando, sabe? Eu quero viver de verdade uma vez
antes que isso tudo acabe, ou então eu não vou conseguir sossegar e estudar para
os exames.
Nonoyama
riu quando ouviu isso. Seu idiota, alunos
de escolas preparatórias não devem ter férias de verão.
O
último domingo de agosto foi o dia 26: se eles tivessem ido em algum lugar à
noite, teria sido no dia 27, 28, 29 ou 30. Asakawa não sabia sobre a escola
preparatória para o colegial, mas ao menos para garotas do colegial, o semestre
de outono começava no primeiro dia de setembro.
Talvez
por ela estar cansada de estar por tanto tempo em arredores não-familiares,
Yoko logo adormeceu próximo à mãe. Quando ele pôs o ouvido na porta do
quarto... era a vez de Asakawa relaxar. Até que sua esposa e filha estivessem a
salvo, não havia espaço neste pequeno condomínio para ele parar para trabalhar.
Asakawa
pegou uma cerveja do refrigerador e serviu-a em um copo. Tinha um sabor
especial nesta noite. Ele havia feito progresso definitivo encontrando aquele
cartão de filiação. Havia uma boa chance que em algum momento entre o dia 27 e
30 de agosto, Shuichi Iwata e os outros três tenham ficado nas instalações do Resort
do Pacífico. O lugar mais provável era a Vila Cabana na Terra do Pacífico em
Hakone do Sul. Hakone do Sul era a única propriedade do Resort do Pacífico perto
o bastante para ser uma candidata viável, e ele não consegui imaginar um grupo
de alunos pobres se empolgando e ficando em um hotel. Eles provavelmente
usariam o cartão de filiação para alugar uma das cabanas que fossem baratas. Era
apenas cinco mil ienes[2]
a noite para membros, o que dava pouco mais de mil ienes[3]
para cada.
Ele
tinha o telefone da Vila Cabana em mãos. Ele pôs as anotações sobre a mesa. A forma
mais rápida seria simplesmente ligar para a recepção e perguntar se um grupo de
quatro pessoas havia ficado lá com o nome Nonoyama. Mas eles nunca lhe diriam
por telefone. Naturalmente, qualquer um que tenha crescido na empresa até a
posição de gerente do aluguel das cabanas teria sido bem treinado para considerar
seu dever proteger a privacidade de seus clientes. Mesmo que ele revelasse sua
posição como repórter de um grande jornal e dissesse claramente suas intenções
em perguntar, o gerente nunca lhe diria por telefone. Asakawa considerou
contatar o escritório local e pedir a um advogado que tivessem contato desejar
ver o registro dos clientes. Os únicos tipos de pessoa a quem um gerente era
legalmente obrigado a mostrar o registo eram advogados e policiais. Asakawa poderia
fingir ser um ou outro, mas provavelmente seria descoberto facilmente, e isso significaria
problemas para o jornal. Era mais seguro e mais eficiente ir pelos canais.
Mas
isso provavelmente levaria ao menos três ou quatro dias, e ele odiava esperar tanto.
Ele queria saber agora. Sua paixão pelo
caso era tanta que ele não conseguia esperar três dias. O que no mundo iria vir
disso? Se, de fato, os quatro tivessem passado a noite na Vila Cabana na Terra
do Pacífico em Hakone do Sul no fim de agosto, e se, de fato, essa pista o
permitisse desvendar o enigma de suas mortes — bem, o que poderia ser, afinal? Um vírus, um vírus. Ele sabia muito bem
que só chamava de vírus para não ser intimidado pelo pensamento de uma coisa misteriosa estar por trás de tudo
isso. Fazia sentindo — até certo ponto — ordenar o poder da ciência em
enfrentar o poder sobrenatural. Ele não chegaria a lugar algum lutando contra
algo que não entendia com palavras que não entendia. Ele teria que traduzir a
coisa que não entendia em palavras que conseguisse entender.
Asakawa
relembrou o choro de Yoko. Por que ela ficou tão aterrorizada quando viu a
máscara de demônio nesta tarde? A caminho de casa no trem, ele perguntou à sua
esposa. — Ei, você está ensinando sobre demônios para a Yoko?
—
O quê?
—
Sabe, com livros ilustrados ou alguma coisa assim. Você a ensinou a temer
demônios?
—
De modo algum. Por que eu faria isso?
A conversa acabara ali. Shizu estava desconcertada,
mas Asakawa estava preocupado. Aquele tipo de medo existia apenas a um nível profundo
e espiritual. Era diferente de temer algo porque lhe ensinaram a temer aquilo. Desde
que saíram sob as árvores, os homens vivem com medo de uma coisa ou outra. Trovões,
tornados, bestas selvagens, erupções vulcânicas, o escuro... A primeira vez que
uma criança tinha uma experiência com trovões e raios, ele ou ela sente um medo
instintivo — isso era compreensível. Para começar, o trovão era real. Realmente
existia. Mas e quanto aos demônios? O dicionário lhe dirá que demônios são
monstros imaginários, ou espíritos de pessoas mortas. Se Yoko estivesse com
medo de um demônio porque parecia assustador, então ela também teria medo dos
modelos de Godzilla — afinal, eles foram feitos para serem temerosos também. Ela
havia visto um, uma vez, na janela de uma loja de departamentos: uma réplica astuciosamente
feita do Godzilla. Longe de sentir-se intimidada, ela encarou-o atentamente,
com os olhos brilhando de curiosidade. Como explicar isso? A única coisa que
ele sabia com certeza é que o Godzilla, não importa como vejam, era um monstro
imaginário. E quanto aos demônios...? E
os demônios são únicos do Japão? Não, outras culturas têm o mesmo tipo de
coisa. Demônios... A segunda cerveja não tinha um sabor tão bom quanto a
primeira. Há mais alguma coisa que Yoko
tenha medo? Isso mesmo, há, sim. Escuridão. Ela tem pavor do escuro. Ela
absolutamente nunca entra em uma sala escura. “Yo-ko”, criança do sol. Mas
a escuridão, também, realmente existia, como o oposto polar da luz. Até mesmo
agora, Yoko estava adormecida nos braços da mãe, em um quarto escuro.
[1] É uma máscara com dentes aterrorizantes, boca grande e dois chifres. Representam sentimentos confusos humanos, como paixão e ódio, por exemplo, que poderiam transformar as pessoas neste demônio.
[2]
R$177,73 em março/2019.
[3]
Pouco mais de R$35,55 em março/2019.
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