terça-feira, 19 de março de 2019

Ring: O Chamado [Parte Um: Outono, Capítulo 3]


            Oguri, seu editor, fechou o rosto enquanto ouvia o relatório de Asakawa. De repente ele se lembrou de como Asakawa era há dois anos. Curvado sobre seu processador de escrita dia e noite, como um homem possuído, ele produziu uma biografia sobre o guru Shouko Kageyama, incorporando toda a sua pesquisa e mais. Havia algo de errado com ele naquela época. Tão atormentado estava ele que Oguri até tentou levá-lo a um psiquiatra.
Parte do problema foi que aconteceu bem naquela época. Há dois anos atrás, toda a indústria de edição foi tomada por uma explosão oculta inaudita. Fotos de “fantasmas” transbordaram os escritórios editoriais. Todo editor no país foi inundado com relatos e fotografias de experiências sobrenaturais, e cada uma delas foi um trote. Oguri se perguntava no que o mundo estava se tornando. Ele imaginava que entendia muito bem como o mundo funcionava, mas não conseguia pensar em uma explicação convincente para esse tipo de coisa. Era totalmente absurdo o número de “contribuintes” que pareciam se esgueirar da carpintaria. Não era um exagero dizer que o escritório era enterrado diariamente por correspondências, e cada pacote tinha algum tipo de relação com o oculto. E não era apenas a companhia Notícias Diárias que era alvo dessa explosão: cada uma das editoras no Japão dignas de seu nome foram tomadas pelo fenômeno incompreensível. Suspirando por causa do tempo que estavam perdendo, eles fizeram uma pesquisa bruta sobre as afirmações. A maiorias das informações eram, como o esperado, anônimas, mas foi concluído que ninguém estava enviando manuscritos múltiplos sob pseudônimos. Em uma bruta estimativa, significava que cerca de dez milhões de indivíduos diferentes enviaram cartas para um editor ou outro. Dez milhões de pessoas! A imagem era desconcertante. As histórias em si não eram nem de longe tão aterrorizantes quanto o fato de que havia tantos deles. De fato, uma a cada dez pessoas no país enviaram algo. Entretanto, nem mesmo uma única pessoa na indústria, nem seus familiares ou seus amigos, estava entre a contagem de informantes. O que estava acontecendo? De onde as pilhas de cartas estariam vindo? Por toda a parte, editores arranhavam suas cabeças. E então, antes que alguém pudesse descobrir, a onda começou a recuar. O estranho fenômeno continuou por cerca de seis meses, e então, como se tudo não passasse de um sonho, as salas editoriais voltaram ao normal, e eles não mais receberam alguma correspondência dessa natureza.
Era responsabilidade de Oguri determinar como a coluna semanal de uma grande editora de jornais deveria agir a tudo isso. A conclusão à qual ele chegou é que deveriam ignorar tudo isso escrupulosamente. Oguri fortemente suspeitava que a fagulha que fora o estopim havia partido de uma classe de revistas que ele rotineiramente chamada de “os farrapos”. Vendo as fotos dos leitores e lendo as histórias, eles alimentaram a fome do público para este tipo de coisa e criaram o atual estado da situação.
Eventualmente, a equipe editorial de Oguri recebeu a tarefa de transportar toda esta correspondência, não abertas, para o incinerador. E eles lidavam com o mundo da mesma forma de sempre, como se nada desagradável estivesse acontecendo. Mantinham uma política estrita de não publicar nada sobre o oculto, fingindo-se de surdos para fontes anônimas. Independente disso resolver ou não, a inaudita maré de envios começou a decair. E, de todos os momentos, foi então que Asakawa tolamente, negligentemente, alimentou as chamas evanescentes com óleo.
Oguri fixou Asakawa com um olhar severo. Ele iria cometer o mesmo erro pela segunda vez?
— Você, ouça bem — sempre que Oguri não conseguia pensar o que dizer, começava assim. Você, ouça bem.
— Eu sei o que está pensando, senhor.
— Agora, não estou dizendo que não é interessante. Não sabemos o que pode pular de volta para nós. Mas, veja bem. Se o que pular em nós for ao menos próximo do que foi na última vez, eu não gostarei muito.
A última vez. Oguri ainda acreditava que a explosão de ocultismo de dois anos atrás foi contida. Ele odiava o oculto por tudo o que passou, devido às circunstâncias, e seu preconceito estava vivo e intenso mesmo após dois anos.
— Não estou tentando sugerir nada místico com isso. Apenas estou dizendo que não poderia ser uma coincidência.
— Uma coincidência. Hum... — Oguri formou uma concha com uma das mãos e levou-a ao seu ouvido e mais uma vez tentou organizar a história.
A sobrinha da esposa de Asakawa, Tomoko Oishi, morreu em sua casa em Honmoku por volta das onze da noite no quinto dia de setembro. A causa da morte foi “insuficiência cardíaca repentina”. Ela era uma sênior no colegial, tinha apenas dezessete anos. No mesmo dia e ao mesmo tempo, um aluno de escola preparatória, de dezenove anos, que estava em sua motocicleta morreu, também por infarto do miocárdio, enquanto esperava em um semáforo em frente à estação Shinagawa.
— Para mim não parece nada além de uma coincidência. Você ouviu sobre o acidente de seu taxista, e na hora lembrou da sobrinha de sua esposa. Nada mais que isso, certo?
— Pelo contrário, — começou Asakawa, e pausou para efeito. E então disso, “O garoto na motocicleta, no momento em que morreu, estava engalfinhando-se para conseguir retirar o capacete.
— ...E então?
— Tomoko, também. Quando o corpo dela foi descoberto, ela parecia estar tentando rasgar sua cabeça. Os dedos dela estavam fortemente entrelaçados em seu próprio cabelo.
Asakawa encontrou Tomoko em diversas ocasiões. Como qualquer garota do colegial, ela era muito atenciosa com seu cabelo, usava shampoo nele todos os dias, e coisas assim. Por que uma garota desse tipo iria querer arrancar o próprio e precioso cabelo? Ele não sabia a natureza do que tenha sido o motivo que a levou a fazer isso, mas todas as vezes que Asakawa pensava nela desesperadamente puxando seu cabelo, imaginava algum tipo de coisa invisível que seguia a linha do horror indescritível que ela deve ter sentido.
— Eu não sei... Você, ouça bem. Você não acha que está vendo isso com preconceitos? Se pegar apenas dois incidentes, poderia encontrar semelhanças se procurasse o bastante. Você está me dizendo que ambos morreram por ataque cardíaco. Então deveriam estar com uma dor muito intensa. Então ela estava puxando o próprio cabelo, ele batalhando para tirar seu capacete... parece bem normal para mim.
Embora tenha que reconhecer que era uma possibilidade, Asakawa balançou a cabeça. Ele não seria derrotado tão facilmente.
— Mas, senhor, então seria o peito que doeria. Por que estariam arrancar a cabeça?
— Você, ouça bem. Você já sofreu um ataque cardíaco?
— Bem... não.
— E já perguntou a um médico sobre isso?
— Sobre o quê?
— Sobre a possibilidade de que uma pessoa sofrendo um ataque cardíaco tentaria arrancar a própria cabeça?
Asakawa ficou em silêncio. Ele havia, de fato, perguntado a um médico. A resposta que obteve foi, “eu não posso dizer que é uma regra.” Era uma resposta um tanto quanto insossa. “Afinal, o oposto acontece às vezes. Em alguns casos, quando uma pessoa sofre uma hemorragia cerebral, ou sangramento na membrana cerebral, sentem desconforto estomacal ao mesmo tempo que dores de cabeça.
— Então, depende do indivíduo. Quando há um problema difícil de matemática, algumas pessoas coçam a cabeça, outras fumam. Algumas podem até mesmo passar a mão em sua barriga. — Oguri balançou em sua cadeira enquanto disse isso. — O meu ponto é, não podemos dizer nada nesse estágio, podemos? Não temos espaço para essas coisas. Sabe, por causa do que aconteceu há dois anos. Não tocamos nesse tipo de assunto, não levianamente. Se estivesse tudo bem em fazer especulações na mídia, então poderíamos, é claro.
Talvez sim. Talvez fosse como o editor disse, era uma estranha coincidência. Mas ainda assim... no fim, o médico apenas balançou a cabeça. Ele havia pressionado o médico — vítimas de ataque cardíaco realmente puxam o próprio cabelo? E o médico apenas franziu a expressão e disse, “hum”. Seu olhar dizia tudo: nenhum dos pacientes que ele vira agiam dessa forma.
— Sim, senhor. Eu entendo.
No momento não havia nada a se fazer além de se retirar humildemente. Se ele não conseguisse descobrir uma ligação mais objetiva entre os dois incidentes, seria difícil convencer seu editor. Asakawa prometeu a si mesmo que se não conseguisse descobrir nada, apenas ficaria quieto e deixaria a situação estar.


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