sexta-feira, 22 de março de 2019

Ring: O Chamado [Parte Um: Outono, Capítulo 4]

Asakawa desligou o telefone e ficou desse jeito por um tempo, sem se mover, com sua mão ainda no receptor. O som de sua própria voz desnecessariamente animada, desligando esperando a reação da outra pessoa ainda ecoava em seus ouvidos. Ele tinha uma sensação de que não conseguiria fazer isso. A pessoa do outro lado pegou o telefone de sua secretária com um tom adequadamente pomposo, mas ao ouvir a proposta de Asakawa, o tom de sua voz ficou um pouco mais leve. A princípio ele provavelmente pensou que Asakawa estava ligando para fazer publicidade. Depois, ele fez alguns cálculos rápidos e percebeu o potencial lucro em ter um artigo escrito sobre seu perfil.
A série de “Grandes Entrevistas” havia começado em setembro. A ideia era pôr o holofote em um CEO que criou sua companhia sozinho, focando nos obstáculos que ele superou e como. Considerando que ele realmente teve sucesso em conseguir um compromisso para fazer uma entrevista, Asakawa deveria ter conseguido desligar o telefone com um pouco mais de satisfação. Mas algo estava pesando sobre ele. Tudo o que ele conseguiria ouvir deste burguês seriam as mesmas velhas histórias de guerras corporativas, elogios sobre quem ele era, como ele colheu suas oportunidades e escalou até o topo... Se Asakawa não o agradecesse e se levantasse para sair, as histórias dos valores continuariam para sempre. Ele estava cansado disto. Ele detestava quem é que tenha começado este projeto. Ele sabia, bem até demais, que a revista tinha que vender um espaço publicitário para sobreviver, e que este tipo de artigo era a base que dava o dinheiro necessário para isso. Mas Asakawa em si, não se importava muito se a empresa ganharia ou perderia dinheiro. Apenas lhe importava se o trabalho era cativante ou não. Não interessava o quão fácil um trabalho era fisicamente, se não envolvesse imaginação, com o tempo acabaria o deixando exausto.
Asakawa seguiu para os arquivos no quarto andar. Ele precisava fazer uma pesquisa a fundo para a entrevista de amanhã, porém mais que isso, havia algo que o incomodava. A ideia de uma relação objetiva e casual entre aqueles dois incidentes o fascinava. E então ele lembrou-se. Ele nem mesmo sabia por onde começar, mas certa questão ocupou um espaço em sua mente no furtivo momento em que ela lutou e se livrou da voz do burguês.
Essas duas mortes inexplicavelmente súbitas eram, de fato, as únicas que ocorreram às onze da noite do quinto dia de setembro?
Caso não fossem — isto é, se houvesse outros incidentes similares — então as chances de ser apenas uma coincidência era praticamente nula. Asakawa decidiu dar uma olhada nos jornais do início de setembro. Parte de seu trabalho era ler meticulosamente jornais. Mas neste caso, ele geralmente lia apenas as manchetes na seção de notícias locais, então talvez há mais que apenas uma chance de que tenha deixado algo passar despercebido. Ele tinha uma sensação de que esse era o caso. Ele tinha a sensação de que, há um mês atrás, no canto de uma página na seção de notícias locais, tinha visto uma manchete estranha. Era um artigo curto, na parte inferior esquerda da página... Tudo o que ele lembrava era onde havia aparecido. Ele lembrava ter lido a manchete e pensado “ei”, mas então, alguém das mesas o chamou, e ele se distraiu com o trabalho, acabando por não ler o artigo.
Com a flutuabilidade de uma criança em uma caçada ao tesouro, Asakawa começou sua busca com a edição matinal do dia 6 de setembro. Ele estava certo de que encontraria uma pista. Ler jornais de meses atrás na sombria sala de arquivos estava lhe dando um incentivo psicológico que nunca sentiu ao entrevistar um burguês. Asakawa era muito mais apto para este tipo de coisa que para correr de um lado para o outro para lidar com pessoas de todo o tipo.
A edição da tarde do dia 7 de setembro — era nesta onde o artigo estava, na exata posição que ele lembrava ter visto. Apertada em um canto pela notícia de um naufrágio que ceifou 34 vidas, o artigo ocupava ainda menos espaço do que ele imaginava. Não o surpreendia que ele tivesse passado despercebido. Asakawa tirou seus óculos de aros prateados, derrubou seu rosto no jornal, e debruçou-se sobre o artigo.

JOVEM CASAL MORTO DE CAUSAS NÃO-NATURAIS EM CARRO ALUGADO

Às 18:15h, no dia 7, um homem e uma mulher jovens foram encontrados mortos nos assentos dianteiros de um carro em um lote vago em Ashina, Yokosuka, próximos à uma estrada da prefeitura. Os corpos foram encontrados por um caminhoneiro que passou por perto e então relatou o caso à delegacia de polícia de Yokosuka.
Pelo registro do carro, os dois foram identificados como um aluno de uma escola preparatória de Shibuya, Tóquio (19 anos), e uma aluna de um colegial particular de garotas de Isogo, Yokohama (17 anos). O carro foi alugado de uma agência em Shibuya duas tardes antes pelo aluno da escola preparatória.
No momento da descoberta, o carro estava trancado com a chave na ignição. O horário estimado da morte é em algum momento entre o fim da noite do dia 5 e antes do amanhecer do dia 6. Como as janelas estavam trancadas, presume-se que o casal tenha adormecido e ficaram asfixiados, mas a possibilidade de terem uma overdose de drogas para cometer um suicídio amoroso não foi descartada. A causa exata da morte não foi determinada. No momento, não há suspeita de homicídio.

Isto era tudo o que havia no artigo, mas Asakawa sentiu as peças se encaixando. Primeiramente, a garota que morreu tinha dezessete anos e frequentava uma escola particular para garotas em Yokohama, assim como sua sobrinha Tomoko. O rapaz que alugou o carro tinha dezenove anos e era aluno em uma escola preparatória, assim como o garoto que morreu em frente à estação Shinagawa. O horário estimado das mortes era praticamente idêntico. A causa da morte também era desconhecida.
Deve haver algum tipo de ligação entre essas quatro mortes. Não demoraria muito para formar semelhanças definitivas. Afinal, Asakawa estava no interior de uma organização que era uma grande fonte de acúmulo de informações — não lhe faltava fontes de informações. Ele fez uma cópia do artigo e partiu para o escritório editorial. Ele sentiu que havia encontrado ouro, e seus passos aceleraram-se por conta própria. Ele mal conseguia esperar o elevador.
O clube de imprensa da Prefeitura de Yokosuka. Yoshino estava sentado à sua mesa, sua caneta correndo por uma folha de papel manuscrito. Enquanto a via expressa não estivesse muito movimentada, você conseguiria chegar aqui do escritório principal em Tóquio em cerca de uma hora. Asakawa apareceu atrás de Yoshino e chamou seu nome.
— Ei, Yoshino.
Ele não via Yoshino em um ano e meio.
— Hã? Ei, Asakawa. O que o traz aqui para Yokosuka? Vamos, sente-se.
Yoshino puxou uma cadeira para a mesa e convidou Asakawa para sentar-se. Yoshino não havia feito a barba, e isso lhe dava uma aparência um pouco gasta, mas ele conseguia ser surpreendentemente empático com os outros.
— Continua ocupado?
— Poderia dizer isso.
Yoshino e Asakawa se conhecem desde que o último estava no departamento de notícias locais, para o qual Yoshino havia entrado três anos antes dele. Yoshino tinha trinta e cinco anos agora.
— Eu liguei para o escritório de Yokosuka. Foi assim que soube que estava aqui.
— Por quê? Precisa de mim para algo?
Asakawa entregou-lhe a cópia que fez do artigo. Yoshino a encarou por um momento extraordinariamente longo. Já que ele mesmo escreveu o artigo, deveria lembrar o que dizia ao vê-lo. Desta forma, ele estava sentado, concentrando todos os seus nervos nele, com a mão congelada ao meio do caminho do movimento de levar um amendoim à boca. Era como se ele estivesse o mascando: relembrando o que escreveu e digerindo.
— O que tem isso? — ponderou Yoshino com uma expressão séria.
— Nada de especial. Eu só queria encontrar mais detalhes.
Yoshino se levantou. — Certo. Vamos aqui ao lado para conversarmos enquanto tomamos uma xícara de café ou algo assim.
— Você tem tempo para isso agora? Tem certeza de que não estou interrompendo?
— Não tem problema. Isso é mais interessante do que o que eu estava fazendo.
Havia uma pequena cafeteria ao lado da Prefeitura onde você conseguiria um café por duzentos yen[1] a xícara. Yoshino se sentou e imediatamente virou-se para o balcão e disse, “dois cafés”. Então, virando-se de volta para Asakawa, ele se curvou, aproximando-se um pouco. — Certo, veja, eu estou no ramo local há 12 anos. Já vi quase todo o tipo de coisa. Mas. Nunca havia encontrado nada tão francamente estranho quanto isso.
Yoshino pausou para bebericar um pouco de água, e então continuou. — Então, Asakawa. Isso deve ser uma troca justa de informações. Por que alguém do escritório principal está procurando por isso?
Asakawa não estava pronto para dar seu retorno. Ele queria todo o furo para si mesmo. Se um expert como o Yoshino imaginasse sobre isso, em um piscar de olhos iria atrás da informação e apanharia o prêmio para si. Asakawa prontamente inventou uma mentira.
— Não é nenhum motivo especial. Minha sobrinha era amiga desta garota que faleceu, e continua me importunando por informações... sabe, sobre o incidente. Então enquanto eu estou por aqui...
Era uma mentira fraca. Ele pensou ter visto um brilho de suspeita nos olhos de Yoshino, e se encolheu de volta, enervado.
— Mesmo?
— Sim, bem, ela é uma aluna do colegial, não é? É ruim o bastante a amiga dela ter morrido, e também tem as circunstâncias. Ela fica me pressionando com isso. Estou implorando. Me dê detalhes.
— Então, o que você quer saber?
— Em algum momento eles decidiram a causa da morte?
Yoshino balançou a cabeça. — Basicamente, disseram que o coração deles parou repentinamente. Não têm nenhuma ideia do porquê.
— E quanto à chance de assassinato? Estrangulamento, por exemplo.
— Impossível. Não havia feridas no pescoço.
— Drogas?
— Nenhum sinal na autópsia.
— Em outras palavras, o caso não foi resolvido.
— Merda, não. Não há o que resolver. Não é um assassinato... não é nem ao menos um incidente, na verdade. Eles morreram de alguma doença, ou por algum tipo de acidente, e é só isso. Ponto final. Não há nem mesmo uma investigação.
É uma forma direta de se dizer. Yoshino inclinou-se de volta em sua cadeira.
— Então por que não revelaram o nome dos falecidos?
— São menores de idade. Além do mais, há suspeita de que tenha sido um suicídio amoroso.
Neste ponto, Yoshino de repente sorriu, como se houvesse lembrado algo, e inclinou-se para a frente de novo.
— Sabe, o garoto? Ele estava com a calça jeans e cueca no joelho. A garota também, a calcinha estava em seus joelhos.
— Então, quer dizer que foi coitus interruptus!
— Eu não disse que eles estavam fazendo isso. Eles estavam apenas se preparando para isso. Estavam apenas se preparando para um pouco de diversão e, bam! Foi quando aconteceu. — Yoshino bateu suas mãos para causar um efeito.
— Quando o que aconteceu?
Yoshino estava contando sua história tentando alcançar um efeito máximo.
— Certo, Asakawa, equipare-se a mim. Você tem algo. Quero dizer, algo que se conecta com esse caso. Estou certo?
Asakawa não respondeu.
— Sei guardar um segredo. Não irei roubar o seu furo, também. Eu só estou interessado nisso.
Ainda assim, Asakawa permaneceu em silêncio.
— Você vai me deixar esperando com o suspense aqui?
Devo dizer...? Mas eu não posso. Não posso dizer nada ainda. Mas as mentiras não estão funcionando...
— Desculpe, Yoshino. Pode esperar um pouco ais? Não posso dizer muito bem ainda. Mas irei em dois ou três dias. Eu prometo.
Desapontamento nublou o rosto de Yoshino. — Se você diz, meu amigo...
Asakawa deu-lhe um olhar suplicante, suplicando que ele continuasse a história.
— Bem, devemos presumir que algo aconteceu. Um garoto e uma garota sufocando na hora em que estavam se preparando para aquilo? Não é nem mesmo engraçado. Acho que é possível que eles tenham tomado veneno e só então o efeito começou, mas não havia traços. É claro, há venenos que não deixam rastros, mas não dá pra imaginar um casal de alunos pondo as mãos em algo assim.
Yoshino pensou no lugar em que o carro foi encontrado. Ele fora pessoalmente e ainda tinha uma impressão clara. O carro estava estacionado em um pedaço de lote vago coberto de mato em um pequeno barranco pouco após a estrada da prefeitura não pavimentada que levava de Ashina para o Monte Okusu. Os carros que vinham pela rua vislumbravam o reflexo das luzes traseiras enquanto passavam. Não era difícil imaginar por que o garoto da escola preparatória, que estava dirigindo, escolhera este lugar para estacionar. Após o cair da noite, dificilmente algum carro utilizava esta estrada, e com a altura e espessura das árvores dando cobertura, era um perfeito esconderijo para um jovem casal sem um tostão.
— Então, tinha o rapaz com a cabeça jogada contra o volante e a janela lateral. Enquanto isso, a garota tinha a cabeça cravada entre o assento de passageiros e a porta. Foi assim que morreram. Eu os vi serem retirados do carro com meus próprios olhos. Ambos corpos caindo no momento em que as portas foram abertas. Era como se no momento da morte, algum tipo de força estivesse os empurrando do lado de dentro, não parou quando eles morreram e continuou empurrando por, pelo menos, trinta horas até os investigadores abrirem as portas, e então saiu em um estouro. Está me acompanhando? Este carro tinha duas portas, um desses que você não consegue trancar as portas com a chave ainda dentro. E a chave estava na ignição, mas as portas... bem, acho que você me entendeu. O carro estava completamente selado. É difícil imaginar que qualquer força do exterior possa tê-los afetado. E que tipo de expressão você acha que eles tinham no rosto? Os dois estavam completamente horrorizados. O rosto dos dois estava contorcido de terror.
Yoshino pausou para respirar um pouco. Houve um longo som de alguém engolindo. Não estava claro qual dos dois havia engolido a própria saliva.
— Pense nisso. Suponha, só pra imaginar esse inferno, que alguma fera temível tenha vindo do mato. Eles estariam assustados, e estariam próximos um do outro. Mesmo que ele não tenha feito isso, a garota absolutamente teria se agarrado a ele. Afinal, eles eram namorados. Mas ao invés disso, as costas dos dois estava pressionada contra as portas, como se eles estivessem tentando se afastar um do outro o máximo possível.
Yoshino jogou as mãos ao ar em um gesto de desistência. — Me deixa uma confusão dos infernos.
Se não fosse pelo naufrágio nas águas de Yokosuka, o artigo poderia ter recebido mais espaço. E se tivesse sido o caso, haveria diversos leitores que adorariam tentar resolver o mistério, bancando o detetive. Mas... Mas. Um consenso foi espalhado, uma atmosfera, entre os investigadores e todos os outros que estivessem na cena. Todos pensavam mais ou menos na mesma coisa, e todos estavam a ponto de explodir de palavras, mas ninguém realmente o fez. Esse tipo de consenso. Mesmo que fosse completamente impossível dois jovens morrerem de ataques cardíacos exatamente ao mesmo tempo, mesmo que ninguém acreditasse mesmo nisso, todos diziam a mesma mentira para si que isso apenas aconteceu assim. Não é que as pessoas evitem dizer algo por medo de ser alvo de gozação ou por não ser científico o bastante. É mais como se estivessem se dando ao horror inimaginável ao admitir isso. Era mais conveniente se satisfazer com a explicação científica, não importa como não fosse nada convincente.
Um calafrio percorreu a espinha de Asakawa e de Yoshino simultaneamente. Sem surpresa, ambos estavam pensando a mesma coisa. O silêncio apenas confirmou o presságio que estava acumulando no peito do homem. Não está acabando é apenas o começo. Não importa de quanto conhecimento científico eles se preenchessem, em um nível bem básico, as pessoas acreditam na existência de algo que as leis da ciência não conseguem explicar.
— Quando foram descobertos... onde estavam suas mãos? — perguntou repentinamente Asakawa.
— Em suas cabeças. Ou melhor, era como se estivessem cobrindo o rosto com as mãos.
— Por acaso estavam puxando o próprio cabelo assim? — Asakawa puxou seu cabelo para demonstrar.
— Hã?
— Ou seja, estavam arrancando suas cabeças, puxando o cabelo ou algo assim?
— Não. Eu acho que não.
— Entendo. Pode me dar os nomes e endereços deles, Yoshino?
— É claro. Mas não esqueça de sua promessa.
Asakawa sorriu e assentiu, e Yoshino levantou-se. Assim que se levantou, a mesa balançou e seu café caiu em seus pires. Yoshino não havia nem tocado nisto.




[1] Cerca de R$6,79 em março/2019.

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