terça-feira, 19 de março de 2019

Ring: O Chamado [Parte Um: Outono, Capítulo 2]

            luz da manhã de outono refletia a superfície verde do fosso interior do Palácio Imperial. O calor sufocante de setembro estava finalmente acabando. Kazuyuki Asakawa estava descendo a plataforma de metrô, mas de repente mudou de ideia: ele queria olhar mais de perto a água que estava observando do nono andar. Parecia que o ar imundo dos escritórios editoriais foi filtrado aqui para os níveis do porão como a sujeira ia para o fundo de uma garrafa: ele queria respirar ar fresco do lado de fora. Ele subiu as escadas da rua. Com o verde do terreno do palácio diante dele, as fumaças de escapamento geradas pela confluência da Via Expressa N° 5 e a Estrada Circular não pareciam tão nocivas. O céu estava brilhante no início da manhã.

            Asakawa estava fisicamente fatigado por ter trabalhado a noite toda, mas não estava com sono.
            O fato de ter completado seu artigo o incentivava e mantinha suas células cerebrais ativas. Ele não tem uma folga há duas semanas, e planejava passar hoje e amanhã em casa, descansando. Ele iria pegar leve e relaxar — ordens de seu editor-chefe.
            Ele viu um táxi vazio vindo na direção de Kudanshita, e ele imediatamente estendeu a mão. Dois dias atrás, seu passe do metrô de Takebashi para Shinbaba expirou, e ele ainda não comprou um novo. Custava quatrocentos yen para chegar em seu condomínio em Kita Shinagawa daqui via metrô, enquanto custava aproximadamente dois mil yen para ir de táxi. Ele odiava desperdiçar mais mil e quinhentos yen, mas quando pensou nas três transferências que teria de fazer no metrô, e no fato de acabar de ter sido pago, ele decidiu aceitar apenas desta vez.
            A decisão de Asakawa de pegar o táxi neste dia e neste lugar não foi nada além de um capricho, o resultado de uma série de impulsos. Ele não subiu da estação de metrô na intenção de pegar um táxi. Ele foi seduzido pelo ar de fora no momento em que um táxi se aproximou com sua luz vermelha de “livre”, e nesse instante, a vontade de comprar um bilhete e se transferir em três estações diferentes parecia um esforço maior do que ele conseguiria suportar. Mesmo assim, se ele pegasse o metrô para casa, alguns incidentes não estariam conectados com quase toda a certeza. Claro, uma história sempre começa com coincidências assim.
            O táxi parou hesitantemente em frente ao Palaceside Building. O motorista era um homem baixo com cerca de quarenta anos, e parece que ele também esteve acordado a noite, pois seus olhos estavam muito vermelhos. Havia um canhoto colorido no painel com o nome do motorista, Mikio Kimura, escrito ao lado.
            — Kita Shinagawa, por favor.
            Ouvindo o destino, Kimura sentia vontade de dançar um pouco. Kita Shinagawa era um pouco depois da garagem de sua companhia em Higashi Gotanda, e já que era o fim do seu turno, ele pretendia ir para aquela direção, de qualquer forma. Em momentos assim, em que ele acertava e as coisas saíam como o planejado, o lembrava que ele gostava de dirigir um táxi. De repente, ele pensou em começar uma conversa.
            — Está cobrindo uma história?
            Seus olhos estavam vermelhos e afadigados, Asakawa estava olhando pela janela e deixando sua mente vagar quando o motorista perguntou isso.
            — Hã? — Ele respondeu, de repente alerta, se perguntando como o taxista sabia sobre sua profissão.
            — Você é um repórter, não é? De um jornal?
            — Sim. A revista semanal Their, na verdade. Mas como você sabia.
            Kimura é taxista por aproximadamente vinte anos e conseguia acertar quase sempre a profissão de um passageiro dependendo de onde os pegava, o que vestem, e como falavam. Se a pessoa tiver um trabalho glamuroso e estiver orgulhosa dele, ele estava sempre pronto para conversar sobre isso.
            — Deve ser difícil ter que estar no trabalho a esta hora da manhã.
            — Não, é o oposto. Eu estou indo para casa dormir um pouco.
            — Bem, então você é como eu.
            Asakawa geralmente não se orgulhava muito de seu trabalho. Mas esta manhã ele estava sentindo a mesma satisfação que sentiu na primeira vez que viu um artigo seu aparecer nas prensas. Ele finalmente terminou uma série em que estava trabalhando, e ela estava atraindo boas reações.
            — Seu trabalho é interessante?
            — Sim, acho que sim. — Disse Asakawa, evasivamente. As vezes era interessante e as vezes não, mas agora ele não poderia se dar ao trabalho de entrar em detalhes. Ele ainda não se esqueceu de sua falha desastrosa há dois anos. Ele claramente se lembrava do título do arquivo em que estava trabalhando:
            — Os Novos Deuses da Modernidade.
            Em sua mente, ele ainda conseguia ver a imagem miserável dele tremendo diante de seu editor-chefe dizendo que ele não poderia continuar como um repórter.
            Por um tempo, houve silêncio no táxi. Eles fizeram a curva à esquerda da Torre de Tóquio em uma velocidade considerável. — Com licença, — disse Kimura. — devo pegar a estrada do canal ou a Keihin N° 1? — Dependendo do lugar de Kita Shinagawa que eles estivessem indo, uma das duas rotas seria mais conveniente.
            — Pegue a via expressa. Me deixe um pouco antes de Shinbaba.
            Um taxista pode relaxar quando sabe exatamente para onde seu passageiro vai. Kimura virou à direita em Fuda-no-tsuji.
            Eles estavam se aproximando agora, a interseção que Kimura não conseguia tirar de sua cabeça durante todo o mês. Diferente de Asakawa, que estava assombrado por sua falha, Kimura conseguia olhar para o acidente bem objetivamente. Afinal, ele não foi responsável pelo acidente, então ele não precisava olhar no fundo de sua alma por causa disso. Foi tudo culpa do outro cara, e não importa o quanto Kimura fosse cuidadoso, ele não poderia ter impedido isso. Ele superou completamente o terror que sentiu. Um mês... isso é muito tempo? Asakawa ainda estava abalado pelo terror que sentiu há dois anos.
            Mesmo assim, Kimura não sabia explicar o porquê, sempre que passava por este lugar, ele sentia a obrigação de dizer às pessoas sobre o que aconteceu. Se Kimura olhasse em seu espelho retrovisor e visse que o passageiro estava dormindo, então ele desistiria, mas caso contrário, então ele conta a todos os passageiros, sem exceção, tudo o que aconteceu. Era uma compulsão. Sempre que ele passa por aquela interseção, ele era tomado pelo impulso de falar sobre isso.
            — A coisa mais infortuna aconteceu bem aqui há cerca de um mês...
            Como se estivesse esperando Kimura começar a história, a luz na interseção mudou de amarela para vermelha.
            — Sabe, muitas coisas estranhas acontecem neste mundo.
            Kimura tentou prender o interesse de seu passageiro dando tais dicas à natureza de sua história. Asakawa estava meio sonolento, mas agora ele repentinamente levantou a cabeça e olhou freneticamente ao seu redor. Ele acordou assustado com o som da voz de Kimura e agora estava tentando descobrir onde estavam.
            — A taxa de morte súbita está aumentando esses dias? Digo, entre pessoas jovens.
            — Hã? — A frase ressoou nos ouvidos de Asakawa. Morte súbita... Kimura continuou.
            — Bem, é que... acho que foi há um mês atrás. Eu estava bem ali, parado no meu táxi, esperando a luz do semáforo mudar, e do nada esta moto cai em cima do meu carro. Não é como se ele estivesse dirigindo e acabou por perder o controle... ele estava parado e, de repente, blam! E o que você acha que aconteceu depois? Oh, o motorista, ele era um garoto de um colégio preparatório, tinha 19 anos. Ele morreu, o idiota. Assustou minha alma pra fora do corpo, isso eu garanto. Então, veio uma ambulância, e os policiais, e então o meu táxi... ele bateu com tudo nele, sabe? Foi uma cena e tanto, vou lhe dizer.
            Asakawa estava ouvindo em silêncio, mas como um repórter veterano com dez anos de profissão, ele desenvolveu uma intuição sobre coisas assim. Instintivamente, ele tomou nota do nome do motorista e do nome da companhia de táxis.
            — A forma que ele morreu foi um pouco estranha, também. Ele estava desesperadamente tentando tirar o capacete. Digo, tentando arrancá-lo. Estava deitado de costas e se debatendo. Eu fui chamar a ambulância e, quando voltei, ele já estava rígido.
            — Onde você disse que isso aconteceu? — Asakawa estava completamente acordado agora.
            — Bem ali. Está vendo? — Kimura apontou para o cruzamento em frente à estação. A Estação Shinagawa ficava na área Takanawa do bairro Minato. Asakawa queimou este fato em sua memória. Um acidente ali estaria sob a jurisdição de Takanawa. Em sua mente, ele rapidamente recordou quais de seus contatos poderiam lhe dar acesso à delegacia de polícia de Takanawa. Em momentos assim, era ótimo trabalhar para um grande jornal: eles tinham conexões em todos os lugares, e às vezes, sua habilidade de conseguir informação era melhor que a dos policiais.
            — Então disseram que foi morte súbita? — Ele não sabia se isso era, de fato, um termo médico. Ele agora perguntava apressadamente, sem nem mesmo perceber por que este acidente o abalou tanto...
            — É ridículo, não é? Meu táxi estava completamente parado. Ele apenas caiu sobre ele. Tudo foi feito por ele. Mas eu tive que assinar um relatório de acidente, e cheguei bem próximo de ser descontado de meu seguro. Vou lhe contar, foi um desastre total, aconteceu do nada.
            — Você se lembra exatamente que dia e a que horas tudo isso aconteceu?
            — Hehe, você está sentindo o cheiro de uma história? Foi em setembro, deixe-me ver, deve ter sido no quarto ou quinto dia do mês. O horário era cerca das onze da noite, eu acho.
            Assim que disse isso, Kimura teve um flashback. O ar abafado, o óleo negro escorrendo da motocicleta caída. O óleo parecia algo vivo enquanto escorria até o esgoto. Faróis refletiam sua superfície enquanto formava gotas viscosas e silenciosamente passava pelo bueiro da rua. Naquele momento em que seus sentidos pareciam ter falhado com ele. E então, o rosto chocado do homem morto, com a cabeça usando o capacete como um travesseiro. O que era tão surpreendente, afinal?
            A luz ficou verde. Kimura pisou no acelerador. Do banco de trás, vinha o som de uma caneta esferográfica deslizando pelo papel. Asakawa estava tomando notas. Kimura sentia-se nauseado. Por que ele estava se lembrando de tudo tão vividamente? Ele engoliu a bile amarga que se acumulava e lutou contra a náusea.
            — E o que você disse que foi a causa da morte? — perguntou Asakawa.
            — Ataque cardíaco.
            Ataque cardíaco? Esse foi mesmo o diagnóstico? Ele pensava que não usassem mais esse termo.
            — Terei que verificar isto, assim como a data e hora. — murmurou Asakawa, enquanto continuava a tomar notas. — Em outras palavras, não havia absolutamente nenhum ferimento externo?
            — Sim, isso mesmo. Absolutamente nenhum. Foi apenas o choque. Quero dizer... eu que deveria estar chocado, não é?
            — Hã?
            — Bem, quero dizer... A rigidez, ele tinha essa cara de completo choque.
            Asakawa sentiu algo piscar em sua mente; ao mesmo tempo, uma voz nele negou qualquer conexão entre os dois incidentes. É apenas uma coincidência, só isso.
            A Estação Shinbaba no trem bala da linha de Keihin Kyuko se aproximava deles.
            — No próximo semáforo, vire à esquerda, por favor.
            O táxi parou e a porta se abriu. Asakawa entregou as notas de dois mil ienes, assim como um de seus cartões de visita. — Meu nome é Asakawa. Eu trabalho no Notícias Diárias. Se estiver tudo bem para você, eu gostaria de ouvir mais detalhes mais tarde.
            — Por mim, tudo bem. — disse Kimura, parecendo contente. Por algum motivo, ele sentiu que essa era sua missão.
            — Eu ligarei amanhã ou no dia seguinte.
            — Você quer meu número?
            — Não se preocupe. Eu anotei o nome da sua companhia. Vejo que não é muito longe.
            Asakawa saiu do táxi e estava prestes a fechar a porta quando hesitou por um momento. Ele sentiu um pavor inominável ao pensar em confirmar o que acabara de ouvir. Talvez eu não deva meter meu nariz onde não sou chamado. Pode ser apenas uma repetição da última vez. Mas agora que seu interesse tinha sido despertado, ele não poderia apenas ignorar. Ele sabia muito bem disso. Ele perguntou a Kimura uma última vez:
            — Este rapaz... ele estava se contorcendo de dor, tentando tirar se capacete, certo?

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