sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Ring: O Chamado [Parte Um: Outono, Capítulo 1]


            5 de setembro de 1990, 20:49h, Yokohama
            Uma fileira de edifícios de condomínios, cada um com catorze andares, ficava na ponta norte do desenvolvimento habitacional próximo ao jardim Sankeien. Embora tenha sido construído recentemente, praticamente todas as unidades estavam ocupadas. Aproximadamente cem habitações se agrupavam em cada edifício, mas a maioria dos habitantes nunca viu o rosto de seus vizinhos. A única prova de que pessoas viviam aqui acontecia à noite, quando luzes vinham das janelas.
            Ao sul, a superfície oleosa do oceano refletia as luzes brilhantes de uma fábrica. Um labirinto de tubos e conduítes subia pelas paredes da fábrica como veias em um tecido muscular. Incontáveis luzes brilhavam na parede da frente da fábrica como insetos que brilham no escuro; até mesmo essa cena grotesca tinha certa beleza. A fábrica fazia uma sombra silenciosa no mar negro à frente.
            Alguns metros mais perto, no desenvolvimento habitacional, uma única casa de dois andares ficava no meio dos lotes vazios espaçados em intervalos precisos. A porta da frente se abria diretamente na rua, que ia para norte e sul, e ao seu lado havia uma garagem para um único carro. A casa era bem simples, como as que se via em um desenvolvimento habitacional novo em qualquer lugar, mas não havia mais nenhuma outra casa nem ao lado nem atrás. Provavelmente devido à inconveniência para conseguir um transporte, poucos dos lotes foram vendidos, e muitas placas de “vende-se” eram vistas aqui e ali na rua. Comparado aos condomínios, que foram completados ao mesmo tempo e imediatamente estava lotado de compradores, o desenvolvimento habitacional parecia bem solitário.
            Um feixe de luz fluorescente caía da janela aberta no segundo andar da casa à escura superfície da rua abaixo. A luz, a única que havia na casa, vinha do quarto de Tomoko Oishi. Vestida em shorts e uma camiseta, ela estava jogada em uma cadeira lendo um livro da escola; o corpo dela estava contorcido em uma posição impossível, as pernas esticadas na direção no ventilador no chão. Abanando-se com a bainha da camiseta para permitir a brisa atingir sua pele, ela murmurou sobre o calor consigo mesma. Uma sênior em uma escola particular para garotas, ela deixou seu dever de casa acumular durante as férias de verão; ela se divertiu demais, e culpava o calor por tudo. O verão, contudo, não foi tão quente assim. Não tiveram muitos dias limpos, e ela quase não conseguiu passar tanto tempo na praia quanto na maioria dos outros verões. E além disso, assim que as férias acabaram, cinco dias seguidos estavam com um clima perfeito de verão. Isso irritou Tomoko: ela ressentia o céu claro.
            Como ela iria estudar neste calor idiota?
            Com a mão que estava passando em seu cabelo, Tomoko virou-a para aumentar o volume do rádio. Ela viu uma mariposa pousar na tela da janela ao seu lado, e então voar para algum lugar, levada pelo vento do ventilador. A tela da janela tremeu um pouco por um momento após o inseto sumir na escuridão.
Ela tinha um teste amanhã, mas não estava chegando a lugar nenhum. Tomoko Oishi não estaria pronta nem se virasse a noite estudando.
Ela olhou para o relógio. Quase onze. Ela pensou em ver o resumo do baseball de hoje na TV. Talvez ela veja seus pais na arquibancada. Mas Tomoko, que queria desesperadamente entrar para uma faculdade. Estava preocupada com o teste. Tudo o que ela precisava fazer era entrar para uma faculdade. Não importa onde, desde que seja uma faculdade. Mesmo assim, que férias de verão insatisfatórias! O péssimo clima a impediu de se divertir de verdade, enquanto a umidade opressora a impediu de fazer seu trabalho.
Foi meu último verão no colegial. Eu queria sair com tudo e agora está tudo arruinado. Fim.
A mente dela vagava para um alvo com mais carne que o tempo para descontar seu mau-humor.
E onde estão meus pais, afinal? Deixando sua filha aqui sozinha estudando assim, coberta de suor, enquanto eles vão vagabundear em um jogo de bola. Por que não pensam em meus sentimentos para variar?
Alguém no trabalho inesperadamente deu um par de ingressos para o jogo dos Giants a seu pai, então ele e sua mãe foram ao Domo de Tóquio. Já está quase na hora em que eles deveriam chegar a casa, a menos que tenham ido a algum outro lugar após o jogo. Por enquanto, Tomoko estava sozinha em sua nova casa.
Era estranhamente úmida, considerando que não chove há vários dias. Além do suor que havia em seu corpo, parecia haver umidade no ar. Tomoko inconscientemente bateu em sua coxa. Mas quando ela desviou sua mão, ela não viu nenhum mosquito. Ela começou a sentir dor um pouco acima de seu joelho, mas talvez fosse só sua imaginação. Ela ouviu um zumbido. Tomoko agitou as mãos na frente de seu rosto. Uma mosca. Ela voou repentinamente para escapar do golpe de ar do ventilador e desapareceu de vista. Como uma mosca entrou no quarto? A porta estava fechada. Tomoko checou a tela da janela, mas não via nenhum buraco grande o bastante para que uma mosca conseguisse passar. Ela de repente percebeu que estava com sede. E ela também precisava urinar.
Ela se sentiu abafada — não exatamente como se estivesse sufocando, mas como se houvesse um peso em seu peito. Por algum tempo Tomoko reclamava consigo mesma sobre como a vida era injusta, mas agora era como se ela fosse uma pessoa diferente, pois ficou em silêncio. Enquanto ela olhava para a escada, seu coração começou a bater mais forte sem motivo. A luz dos faróis de um carro que estava passando lá fora iluminou a parede no fim das escadas e sumiu novamente. Conforme o som do motor do carro se distanciava, a escuridão na casa parecia estar ficando ainda mais intensa. Tomoko intencionalmente fez muito barulho enquanto descia as escadas e acendeu a luz na sala do andar de baixo.
Perdida em seus próprios pensamentos, ela continuou sentada no vaso sanitário, mesmo muito tempo após terminar de urinar. Os violentos batimentos de seu coração ainda não se acalmaram. Ela nunca sentiu nada assim. O que estava acontecendo? Ela respirou fundo várias vezes para se acalmar, e então se levantou e vestiu de novo sua roupa de baixo e shorts ao mesmo tempo.
Mãe, pai, cheguem logo, ela disse consigo, como uma garotinha. Credo. Com quem estou falando?
Não era como se ela estivesse falando com seus pais, pedindo para eles voltarem rápido. Ela estava falando com outra pessoa...
Ei. Pare de me assustar. Por favor...
Antes que percebesse, ela estava pedindo educadamente.
Ela lavou as mãos na pia da cozinha. Sem secá-las, ela pegou alguns cubos de gelo do freezer, os jogou em um copo, e o encheu de coca-cola. Ela acabou com o conteúdo do copo em um gole e o colocou sobre o balcão. Os cubos de gelo balançaram no copo por um tempo, e então pararam. Tomoko sentiu calafrios. Ela estava com frio. Sua garganta ainda estava seca. Ela pegou a garrafa de coca-cola do refrigerador e encheu mais uma vez o copo. Suas mãos estavam tremendo agora. Ela tinha a sensação de que havia algo atrás dela. Alguma coisa — definitivamente não era uma pessoa. O fedor de carne apodrecida mesclava no ar ao seu redor, envolvendo-a. Não podia ser nada corpóreo.
— Pare! Por favor! — Ela implorou, em voz alta desta vez.
A lâmpada fluorescente de quinze watts sobre a pia da cozinha acendia e apagava como uma respiração irregular. Deveria estar nova, mas sua luz parecia ser bem insegura agora. De repente, Tomoko desejou que tivesse acendido todas as lâmpadas da cozinha. Mas ela não conseguia andar até o interruptor. Ela não conseguia nem se virar. Ela sabia o que havia atrás dela: um quarto de estilo japonês com oito tatames, com o altar budista dedicado à memória de seu avô na alcova. Através das cortinas entreabertas, ela viu o gramado nos lotes vazios e uma fina faixa de luz vinda dos condomínios além. Não deveria haver nada além disso.
Quando ela bebeu o segundo copo de coca-cola, Tomoko não conseguia mais se mover. A sensação era muito intensa, ela não poderia estar só imaginando a presença. Ela estava certa de que algo estava se estendendo agora mesmo para tocar seu pescoço.
E se for...? Ela não queria pensar no resto. Se ela pensasse, se continuasse com isso, ela se lembraria, e ela não achava que conseguiria suportar o terror. Aconteceu há uma semana, tanto tempo que ela já havia até mesmo esquecido. Foi tudo culpa do Shuichi — ele não deveria ter dito aquilo... Depois disso, nenhum deles poderia parar. Mas eles haviam voltado para a cidade e aquelas cenas, aquelas imagens vívidas, não pareciam ser tão verídicas. A coisa toda deve ter sido apenas uma ideia que alguém teve para tirar sarro de outros. Tomoko tentou pensar em algo mais animado. Qualquer coisa além daquilo. Mas e se fosse... se aquilo tivesse sido real... afinal, o telefone tocou, não é?
...Ah, mãe, pai, o que estão fazendo?
— Venham logo para casa! — Tomoko gritou com toda a força.
Mas mesmo depois que ela disse isso, a sombra macabra não dava sinais de desaparecer. Estava atrás dela, parada, assistindo e esperando. Esperando sua chance chegar.
Aos dezessete anos, Tomoko não sabia o que era o verdadeiro terror. Mas ela sabia que havia medos que cresciam na imaginação das pessoas por conta própria. Deve ser isso. Sim, é só isso. Quando eu me virar, não vai ter nada aqui. Nada mesmo.
Tomoko foi tomada pelo desejo de virar-se. Ela queria confirmar que não havia nada ali e sair desta situação. Mas realmente era só isso? Um calafrio maligno parecia subir por seus ombros, se espalhar por suas costas, e descer por sua espinha cada vez mais. Sua camiseta estava coberta de suor frio. Suas respostas físicas eram muito fortes para ser só sua imaginação.
...Alguém não disse que o corpo é mais honesto que a mente?
Contudo, outra voz também falou: Vire-se, não deve ter nada aqui. Se você não terminar sua coca-cola e voltar aos seus estudos, não há uma forma descrever como você se sairá no teste amanhã.
Um cubo de gelo que estava no copo rachou. Como se tivesse sido incentivada pelo som, sem parar pra pensar, Tomoko virou para trás.

5 de setembro, 20:54h
Tóquio, na interseção em frente à estação Shinagawa. A luz do semáforo ficou amarela diante dele. Ele poderia ter avançado, mas ao invés disso, Kimura guiou seu táxi ao meio-fio. Ele esperava pegar algum passageiro que fosse para a Travessia Roppongi; vários passageiros que ele pegava iam para Akasaka ou Roppongi, e não era incomum pessoas aparecerem quando ele estava parado em um semáforo assim.
Uma motocicleta parou entre o táxi de Kimura e o meio-fio e parou no fim da encruzilhada. O motoqueiro era um jovem vestindo jeans. Kimura se incomodava com motocicletas, a forma que elas costuravam seu caminho e avançavam no trânsito assim. Ele especialmente odiava quando estava esperando em um semáforo e uma motocicleta parava ao lado de sua porta, bloqueando-a. E hoje, passageiros o incomodaram o dia todo e o deixou de mau-humor. Kimura deu um olhar amargo para o motoqueiro. Seu rosto estava escondido pelo visor do capacete. Uma perna descansava no meio-fio da calçada, com seus joelhos esticados e ele balançava o corpo para frente e para trás de uma forma desleixada.
Uma jovem moça com belas pernas caminhava pela calçada. O motoqueiro irou sua cabeça para vê-la passar. Mas seu olhar não a seguiu o caminho todo. Sua cabeça girou 90 graus quando ele pareceu fixar seu olhar na vitrine atrás dela. A mulher andou e sumiu de seu campo de visão. O motoqueiro ficou para trás, encarando algo atentamente. A luz de “ande” começou a piscar e então se apagou. Os pedestres no meio da rua começaram a correr, atravessando na frente do táxi. Ninguém estendeu a mão ou veio na direção do táxi. Kimura aqueceu o motor e esperou o semáforo ficar com a luz verde.
Nesse mesmo instante, o motoqueiro parecia ter sofrido um grande espasmo, levantou ambos os braços e desmaiou contra o táxi de Kimura. Ele caiu contra a porta do táxi com um ruído surdo e desapareceu de sua vista.
Seu maldito.
O garoto deve ter perdido o equilíbrio e caído, pensou Kimura enquanto acendeu as luzes piscantes e saiu do carro. Se a porta estivesse danificada, ele pretendia fazer o garoto pagar pelos reparos. A luz ficou verde e os carros que estavam atrás do táxi de Kimura começaram a passar pela interseção. O motoqueiro estava com o rosto virado para o chão da rua, batendo suas pernas e se contorcendo com ambas as mãos para retirar seu capacete. Antes de checar o garoto, entretanto, Kimura primeiro checou seu ganha-pão. Como ele esperava, havia um longo e curvo arranhão na porta.
— Merda! — Kimura estalou a língua de desgosto enquanto se aproximava do homem caído. Apesar do fato da faixa estar seguramente presa sob seu queixo, o rapaz estava desesperadamente tentando retirar seu capacete — ele parecia pronto para arrancar sua própria cabeça no processo.
Está doendo tanto assim?
Kimura agora percebia que havia algo seriamente errado com o motoqueiro. Ele finalmente se agachou próximo ao homem e perguntou, — Você está bem?
Por causa do visor colorido, ele não conseguiu ver a expressão do homem. O motoqueiro apertou a mão de Kimura e parecia estar implorando por algo. Ele estava quase se agarrando a Kimura. Ele não disse nada. Ele não tentou levantar o visor. Kimura começou a agir.
— Fique calmo, eu vou chamar uma ambulância.
Correndo para um telefone público, Kimura se perguntou como uma simples queda poderia acabar assim. Ele deve ter batido a cabeça com força.
Mas não seja estúpido. Aquele idiota estava usando um capacete, não é? Não parece que ele quebrou um braço nem uma perna. Espero que isso não acabe sendo um estorvo... Não seria muito bom pra mim se ele acabou se ferindo batendo no meu carro.
Kimura tinha um mal pressentimento sobre isso.
Então, se ele estiver gravemente ferido, será descontado do meu seguro? Isso significa um boletim de ocorrências, o que significa que os policiais...
Quando ele desligou e voltou, o homem estava no chão, sem mover um músculo sequer e suas mãos apertando seu pescoço. Vários pedestres pararam para ver o que estava acontecendo e faziam expressões preocupadas. Kimura abriu seu caminho no meio da multidão, e deixou claro a todos que ele que chamou a ambulância.
— Ei! Ei! Aguente firme. A ambulância está chegando. — Kimura soltou a faixa de seu capacete, ele saiu com facilidade. Kimura não conseguia acreditar como o rapaz estava lutando contra isso antes. O rosto do homem estava incrivelmente distorcido. A única palavra que conseguia descrever sua expressão era espanto. Seus olhos estavam bem abertos e encaravam algo e sua língua vermelha-brilhante estava presa no fundo de sua garganta, bloqueando-a, enquanto saliva escorria do canto de sua boca. A ambulância chegaria tarde demais. Quando suas mãos tocaram a garganta do garoto enquanto tirava seu capacete, ele não sentiu seu pulso. Kimura tremeu. A cena estava fugindo da realidade.
Uma roda da motocicleta caída ainda girava devagar e óleo escapava do motor, criando uma poça na rua e indo para o esgoto. Não tinha nenhuma brisa. O céu noturno estava claro, enquanto sobre suas cabeças a luz do semáforo ficava vermelha de novo. Kimura se levantou agitadamente, segurando o corrimão que havia na calçada. E então ele olhou mais uma vez para o homem caído na rua. A cabeça do homem, repousada sobre seu capacete, estava curvada em aproximadamente um ângulo reto. Era uma postura antinatural, não importa como vejam isso.
Eu o coloquei ali? Eu coloquei a cabeça dele no capacete assim? Como se fosse um travesseiro? Por quê?
Ele não conseguia se lembrar dos últimos segundos. Aqueles olhos bem abertos estavam olhando para ele. Um calafrio sinistro tomou conta dele. Um ar morno pareceu passar sobre seus ombros. Era uma noite tropical, mas ainda assim, Kimura sentia calafrios incontroláveis.

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