quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Os Assassinatos da Casa Decagonal [Capítulo Um: O Primeiro dia na Ilha, Parte 1]


— Temo que isso se tornará a mesma discussão banal. — disse Ellery.
Ele era um jovem esbelto, alto e magro.
— Na minha opinião, mistério ficcional é, em seu núcleo, uma forma de jogo intelectual. Um jogo excitante de raciocínio na forma de um romance. Um jogo entre o leitor e o grande detetive, ou entre o leitor e o autor. Nada mais, nada menos que isso.
— Então basta do realismo da escola social do mistério ficcional antes tão favorecida no Japão. Uma secretária é assassinada em um apartamento e, após ficar em seus pés através de uma investigação dolorosa, o detetive policial finalmente prende o chefe da vítima, que acaba por ser seu amante ilícito. Já basta disso! Basta das corrupções e transações secretas do mundo político, de tragédias causadas pelo estresse da sociedade moderna e afins. O que os romances de mistério precisam é de — alguns podem me chamar de velha guarda — um grande detetive, uma mansão, seus misteriosos moradores, assassinatos sangrentos, crimes impossíveis e truques jamais vistos criados pelo assassino. Diga que é meu castelo no céu, mas estou feliz enquanto puder vivenciar tal mundo. Mas sempre em uma maneira intelectual.
Eles estavam em um barco de pesca com cheiro fétido de óleo, cercados pelas pacíficas ondas do mar. O motor estava fazendo barulhos preocupantes como se estivesse se esforçando ao máximo.
— Isso fede.
Carr, apoiado contra o trilho do barco, franziu seu rosto e travou seu longo e recentemente barbeado queixo.
— Não tenho tanta certeza disso, Ellery. Você e sua “em uma maneira intelectual”. Tudo bem que você considere mistérios ficcionais um jogo, mas não consigo suportar você frisando “intelectual” todas as vezes.
— Isso é surpreendente vindo de você.
— Isso é apenas elitismo. Nem todos os leitores são tão sabichões quanto você.
— Você está certo...
Ellery manteve uma cara séria enquanto olhava para Carr.
— ...e isso é completamente lastimável. Eu percebo muito bem apenas dando uma volta ao redor do campus. Nem mesmo todos os membros do nosso clube são o que você poderia chamar de inteligentes. Há um ou dois deles que podem até mesmo ter desafios, intelectualmente falando.
— Você está querendo começar uma briga?
— Eu não ousaria.
Ellery deu de ombros.
— Ninguém disse que você era um deles. O que quero dizer com inteligente é sobre sua atitude em relação ao jogo. Não estou dizendo que são espertos ou estúpidos. Não há ninguém na face da Terra que não possua ao menos um pouco de inteligência. Similarmente, não há ninguém na face da Terra que não goste de jogos. O que estou falando é sobre uma habilidade de jogar enquanto mantém uma abordagem intelectual.
Carr bufou e virou seu rosto. Um sorriso levemente zombeteiro apareceu no rosto de Ellery enquanto ele se virava para o garoto com o rosto jovem e óculos redondos ao lado dele.
— E além disso, Leroux, a ficção de detetives evoluiu baseada em seu próprio conjunto de regras, e se considerarmos que seja seu próprio universo único, na forma de um jogo intelectual, então devo admitir que nos tempos modernos, a criação deste universo enfraqueceu severamente.
— Oh. — Leroux parecia duvidoso.
Ellery continuou:
— É uma discussão que continua desde os tempos imemoriais. Policiais diligentes fazendo o seu trabalho lentamente, porém certamente; organizações sólidas e eficientemente coordenadas; as mais recentes técnicas em investigação forense: a polícia não pode mais ser considerada incompetente. Eles são quase competentes demais. Realisticamente falando, não há mais lugar para as façanhas dos detetives de outrora, com seus pequenos celulares cinzas como sua única arma. O Sr. Holmes seria uma piada se aparecesse em uma de nossas cidades modernas.
— Eu acho que isso pode ser um exagero. Um Holmes moderno, apto para nossos tempos modernos, certamente irá aparecer.
— Você está certo, é claro. Ele fará a sua entrada como um mestre das últimas técnicas forenses patológicas e científicas. E ele explicará tudo ao pobre caro Watson, usando jargão complexo e especialista e fórmulas que nenhum leitor nem mesmo conseguirá começar a compreender. Elementar, meu caro Watson, você não sabia disto?
Com suas mãos dentro dos bolsos de sua capa de chuva bege, Ellery franziu o rosto de novo.
— Estou apenas levando o argumento ao extremo, entende? Mas ilustra perfeitamente o meu ponto. Eu não sinto vontade de aplaudir a vitória de técnicas policiais antirromânticas sobre a magnífica lógica dos grandes detetives dos Anos Dourados. Qualquer autor que deseje escrever uma história de detetives hoje em dia deve se deparar com este dilema.
— E a forma mais simples de contorná-lo, ou melhor, digamos a mais efetiva, é o método do “chalé na tempestade de neve” de estabelecer um ambiente selado.
— Entendo. — Leroux assentiu e tentou parecer sério. — Então o que você quer dizer é que todos os métodos usados nos clássicos das ficções de detetives, o “chalé na tempestade de neve”, é o mais indicado para os tempos modernos.
Fim de março. Já era quase a primavera, mas o vento soprando ao longo do mar ainda estava frio.
Na Península S— na costa leste da Prefeitura Oita em Kyuushuu está o Promontório J—. O barco deixava o porto da rústica cidade S— perto do Promontório J—, e estava se movendo para longe dele, deixando rastros para trás na água e a vista do Promontório J— desaparecia no mar. Seu destino era uma pequena ilha a cerca de cinco quilômetros de distância do promontório.
O tempo estava perfeitamente claro, mas graças às tempestades de poeira que eram tão típicas desta região na primavera, o sol estava mais para branco que para azul. A luz do sol iluminando tudo transformava a agitação das águas em prateado. Vestidos no véu empoeirado carregado pelo vento de uma terra distante, todo o cenário ficou nublado.
— Não vejo outros barcos por aqui.
O homem mais delgado, que estava fumando em silêncio enquanto se apoiava no trilho do barco oposto a Ellery e os outros, de repente falou. Ele tinha cabelos longos e despenteados e barba áspera, que cobria a parte inferior de seu rosto. Era Poe.
— A maré do outro lado da ilha é muito perigosa, então todos evitam. — Respondeu o mais velho, porém enérgico pescador. — As áreas de pesca por cá são mais pro sul, tá entendendo? Então cês não vão ver barcos indo pra ilha, nem os que saíram agora. Falando nisso, cês são estudantes do colegial estranhos, ?
— Nós parecemos mesmo tão estranhos?
— Pra começar, cês todos têm nomes esquisitos. Eu ouvi nomes estranhos tipo Lulu e Elroy e tal. Cês gostam desses também?
— Sim, bem, eles são meio que apelidos.
— Todas as crianças de universidade têm nomes esquisitos assim?
— Não, não é isso.
— Então cês são um grupo bizarro, ?
Os dois jovens homens, em frente ao pescador e Poe, estavam sentados em uma longa caixa de madeira posta no centro do barco, que servia como um banco improvisado. Incluindo o filho do pescador, que estava conduzindo o leme ao fundo, o barco tinha oito passageiros.
As seis pessoas além do pescador e seu filho eram todos alunos da Universidade K— da cidade de O— na Prefeitura Oita, e também eram membros do Clube de Mistério da Universidade. “Ellery”, “Carr” e “Leroux” eram, como “Poe” disse, algo como apelidos.
Sem precisar mencionar, os nomes eram derivados dos autores americanos, ingleses e franceses de mistérios que eram bem respeitados: Ellery Queen, John Dickson Carr, Gaston Leroux e Edgar Allan Poe. As duas mulheres eram chamadas “Agatha” e “Orczy”, e os nomes originais eram, é claro, Agatha Christie, a Rainha do Crime, e a Baronesa Orczy, conhecida por The Old Man in the Corner.
— Olhem, cês podem ver o edifício de Tsunojima agora. — Gritou o pescador. Os seis jovens olharam para a ilha que estava se aproximando cada vez mais.
Era pequena e plana.
Uma parede vertical surgia do mar, coberta no topo por uma franja escura. Lembrava uma pilha de moedas de 10 yen gigantes. As três curtas capas, ou uma espécie de “chifres” salientes no mar, era o que deu o nome de Tsunojima, que significa “Ilha do Chifre”.
Já que havia penhascos para todos os lados da ilha, o barco só conseguia chegar através de uma pequena passagem, esse era o motivo pelo qual a ilha só era visitada ocasionalmente por curiosos pescadores amadores. Cerca de vinte anos atrás, alguém se mudou para lá e construiu um estranho edifício chamado de Mansão Azul, mas agora era genuinamente inabitada?
— O que há no topo daquele penhasco? — Perguntou Agatha, levantando-se do banco. Ela apertou os olhos, encantada, enquanto passava uma mão por seus cabelos longos e ondulantes dançando ao vento.
— Aquele é o edifício anexo meio queimado. Ouvi que a mansão principal foi completamente perdida em um incêndio. — Explicou o pescador em uma voz alta.
— Então essa é a “Casa Decagonal”, não é, velho? — Perguntou Ellery ao pescador. — Você já esteve na ilha?
— Já passei pela entrada algumas vezes pra evitar o vento, mas nunca pisei na ilha mesmo. Nem chego perto depois do incidente. Melhor cês terem cuidado também.
— Cuidado com o quê? — Perguntou Agatha, virando-se.
O pescador diminuiu seu tom de oz.
— Dizem que aquilo aparece na ilha.
Agatha e Ellery se entreolharam rapidamente, ambos curiosos pela resposta.
— Um fantasma. Sabem, o fantasma do morto. Nakamura alguma coisa.
As numerosas rugas bem formadas no rosto escuro do pescador se tornaram uma carranca e, como se para assustá-los, ele sorriu maleficamente para os alunos.
— Eu ouvi que cês podem ver uma figura branca naquele penhasco se passarem aqui num dia de chuva. Esse fantasma do tal Nakamura, tentando levar cês pra lá acenando. Tem outras histórias também, tipo pessoas vendo uma luz no anexo abandonado, coisas obscuras flutuando perto da mansão queimada, até sobre um barco com um pescador afundar por causa do fantasma.
— Não vai funcionar, velho. — Riu Ellery. — Não adianta tentar nos assustar com essas histórias. Só vai nos deixar mais entusiasmados.
A única pessoa entre os seis alunos que parecia ter se assustado, mesmo que um pouco, era Orczy, que ainda estava sentada sobre a caixa de madeira. Agatha não parecia estar perturbada. Pelo contrário, ela estava até mesmo murmurando “Isso é incrível”, animada. Ela virou-se para os fundos do barco.
— Ei, essas histórias são mesmo verdade? — Perguntou entusiasmada ao filho do pescador, que ainda era um garoto, que estava segurando o leme.
— Tudo falso.
Ele encarou o rosto de Agatha e, virando-se como se tivesse sido ofuscado por algo brilhante, disse de forma rude: — Eu ouvi os rumores, mas nunca vi um fantasma com meus próprios olhos.
— Nem mesmo uma vez? — Disse Agatha, desapontada. Mas então ela sorriu maliciosamente.
— Mas não seria nada estranho se fantasmas aparecessem lá. — Disse ela.
— Pois esse é o lugar em que aquilo aconteceu.
Era 11 da manhã de quarta-feira, dia 26 de março de 1986.

<< Capítulo Anterior                                                                        Próximo Capítulo >>

Nenhum comentário:

Postar um comentário