quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Vamp! I [Introdução + Prólogo]



            — Quem sou eu, você pergunta?
            — Então, em uma tentativa de entender o que eu sou, para poder confirmar suas suspeitas sobre o tipo de criatura que eu sou, você veio me perguntar pessoalmente!
            — Então permita-me responder sua pergunta com completa sinceridade! Meu nome é Gerhardt von Waldstein. Me foi concedido o nobre título de “visconde” e confiado o domínio da ilha Growerth por Vossa Majestade Imperial, o Imperador.
            — Permita-me começar apresentando-lhe à minha família. Ah, dizem que um olhar para uma criança revela muito sobre seus pais, não é mesmo?
            — Começaremos por Relic — meu filho adotivo, e alguém que não poderia estar mais perto do status de puro-sangue. Um sangue-puro de quê, você pergunta? Bem, do que era mesmo que você chamava aqueles iguais ao meu filho? Mestres da Noite, Nosferatu, Voadores Noturnos et cetera... Ah, é claro! Esqueci dos mais reconhecíveis de nossos nomes.
            — Talvez seja mais preciso chamar-nos de “Vampiros”.
            — O que você acha dos seres conhecidos como vampiros? Sente medo? Ódio? Ou talvez um senso de curiosidade e reverência que você reserva para criaturas lendárias. Mas se você espera tais façanhas do meu filho, temo dizer que se desapontará e tanto. Afinal, Relic é um garoto demasiado gentil para ser algo além de si mesmo.
            — Minha filha Ferret é a irmã mais nova e gêmea de Relic. Longe de mim me gabar, mas ela cresceu e se tornou linda. Mas recentemente ela tem ficado um tanto quanto estranhamente orgulhosa — ou teimosa seja a forma mais indicada de dizer. Claro, não é da vaidade que digo, mas seu orgulho sobre sua família e natureza como vampira. Na verdade, duvido que ela mesma reconheça sua própria beleza ainda, mas talvez eu passe como um pai idólatra demais se dissesse que isso é um dos diversos motivos que a torna tão querida para mim.
            — O que estou tentando dizer é, posso me gabar orgulhosamente de meus filhos — o que, ao mesmo tempo, significa que estou me gabando orgulhosamente sobre seu pai, eu mesmo, de forma indireta. Seus elogios, eu suplico!
            — ...Isso foi uma piada. Gostaria de deixar registrado que não sou tão baixo ao ponto de usar minhas amadas crianças para honrar-me.




            — Eu digo que sou o Lorde desta ilha, mas na verdade, já faz muito tempo desde que aristocratas têm algum poder neste país. Ou seja, o lado humano desta ilha está sob a jurisdição de outra pessoa.
            — O nome deste homem é Watt Stalf. Esqueça as circunstâncias, mas ele é uma figura poderosa nesta ilha — e um homem que me considera seu pior inimigo.
            — Ele é um homem que tem uma perspectiva otimista sobre suas próprias ambições. Os outros nascidos da união entre os mundos opostos da Noite e do Dia podem lamentar suas circunstâncias e acreditar que não fazem parte daqui ou de lá. Mas este homem usou sua herança dupla para sua vantagem — durante o dia, como um humano esperto usando seus talentos. E durante a noite, trabalhando com violência em todos os tipos de vilania como um homem de descendência vampírica.
            — ...Suponho que “vilania” não é necessariamente a palavra correta para mim. Afinal, este homem não é atingido pelo bem ou pelo mal, e apenas age conforme seus desejos o impulsionam.
            — Por isso suas ações as vezes parecem bem irracionais, e seus planos, inferiores e acidentais. Mesmo que seu plano fosse executado noventa por cento ao caminho da perfeição, ele é do tipo de homem que o abandonaria sem pensar duas vezes caso não alcance o resultado desejado. E até mesmo nesse incidente que estou prestes a revelar-lhe, ele agiu de formas extremamente irracionais — tudo para conseguir me causar humilhação. Embora eu suponha que aqueles envolvidos em suas fantasias se sintam terrivelmente incomodados, pessoalmente eu me apeguei a mesquinharia deste homem. Na verdade, eu iria ao ponto de dizer que o respeito nesse sentido.
            — Este vilão mesquinho é o tipo de homem que cresce e amadurece. Ele é perfeito para a maioria dos heróis em sua vontade de ver tudo o que faz até o fim, mas ele nunca se tornará alguém tão grandioso como eles. E acredito que seja por isso que seus seguidores têm um ponto fraco por ele, dentro de seus corações — afeição pelo mais nobre dos vilões mesquinhos, o homem que nunca desistirá de seus ideais.


— Não seria exagero dizer que o jantar é um microcosmo da vida em si. Seus alimentos favoritos, suas maneiras à mesa, e até mesmo as conversas de que você participa à mesa dizem muito sobre suas crenças. E falando nisso, eu recentemente encontrei uma jovem que era particularmente apaixonada pela arte de comer.
— O nome dela é Kijima Shizune.
— Como devo explicar? Ela participa de certos tipos de refeições com um impulso incomum. Afinal, ela deve apostar sua vida para obter todo o tipo de comida. Ela se tornou uma caçadora de alimentos, uma artista culinária e uma gourmet.
— Hm? Estão dizendo que gostariam de experimentar o menu dela também, meus amigos? Embora eu não tenha o direito de impedi-los, devo lhes alertar; comer como ela não é uma questão de pôr seu dinheiro ou paladar em risco, é um estilo de vida que irá assombrá-los pelo resto da vida. Os ingredientes crus que ela procura são —



— Você pergunta se estou sendo muito autoconsciente? Mas é claro! No fim, somos criaturas além da lógica humana. Vossa Majestade Imperial tinha um senso de humor afiado e tanto, concedendo um título que não existe neste país a mim, uma criatura que não deveria existir. Não seria muita coincidência? É claro, eu tenho orgulho do meu título de visconde, assim como me orgulho de minha identidade.
— Eu protejo esta ilha com um título nobre que não existe, e ao mesmo tempo, recebo a ajuda das pessoas desta terra.
— Como exemplo, está vendo aqueles dois bem ali? O garoto enérgico à direita é Michael¹, e ao lado dele está sua irmã mais nova, Hilda.
— Os dois são grandes amigos de meus filhos, ou talvez seja mais correto dizer que Relic e Hilda são quase que namorados. Quando à Ferret e Michael... digamos por enquanto que eles têm um laço poderoso. Ah, embora eu ache bem simples aceitar os casos românticos do meu filho, é um pouco difícil pensar o mesmo pela minha filha.
— Não quero dizer que tenho algo contra Michael. Na verdade, eu nunca poderia agradecer o suficiente por animarem minhas crianças. A alegria deles faz com que minhas crianças sorriam, o que também me anima.
— Estes irmãos são o tipo de pessoa pelo qual eu vivo. Afinal, a felicidade deles me deixa feliz também. Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Isso realmente importa se ambos são deliciosos, em sua própria maneira?
— Hm? Estão dizendo que estão fartos de introduções, meus amigos? Desejam me conhecer pessoalmente? Hah, parece que vocês ainda não notaram. Eu já lhes mostrei minha forma verdadeira há um tempo, queridos amigos! Por todo esse tempo. Sim, bem diante de seus olhos. Afinal, eu 


¹ Pronunciado como Mihael.




As nuvens estavam baixas no céu, como se estivessem preparadas para levar as crianças que caminhavam pelas ruas. Com um grande olho vermelho que olhava para a terra, discutindo qual das crianças deveria levar.
Tossindo, elas espalharam neve sobre as ruas.
No fim, isto é o que os Demônios são — disse Deus.



Prólogo 1: O Garoto e a Garota Diante do Caixão



            Pinga, pinga, eles pingam.
            Uma chuva de sangue caindo, pinga, pinga, cai.

Maio de 2003. A capela do Castelo Waldstein, na ilha de Growerth, Alemanha.

Visconde Waldstein, senhor?
            Era uma palavra que não existia neste país.
            Com a Proclamação da República Weimar, em 1919, a nobreza perdeu todo o seu poder e privilégio. Mas deixando até mesmo este problema de lado, o título de “visconde” não existia neste país, para início de conversa. Ao invés do título de “visconde”, os alemães usavam palavras como Vildgrave, Palsgrave, Burgrave, Markgrave ou Raugrave para indicar todo o tipo de posições entre os níveis de “barão” e “conde”.
            E em um castelo antigo no país que tinha tal história, a palavra estrangeira se repetiu.
            — Visconde Waldstein, por favor nos diga.
            Na majestosa capela, duas crianças estavam diante do altar. Eram crianças, em termos legais, mas fisicamente, eram adolescentes — ambos com cerca de quinze anos.
            Conforme o garoto olhava para ele de forma nervosa, a garota continuava a se dirigir ao grande contêiner diante deles com a palavra que não existia.
            — Visconde Waldstein, quando Relic e Ferret voltarão para a ilha?
            Embora seu tom de se dirigir a um aristocrata estivesse faltando requinte, a voz da garota demonstrava um respeito inegável. Esta cortesia não era mantida por algum tipo de diferenças de classes — era um senso de respeito forjado por uma ligação de confiança.
            Contudo, diante da garota não havia nada além de um caixão branco parado do altar a frente.
            Um raio de luz do sol atingia o caixão através da claraboia. As crianças estreitaram os olhos enquanto a luz refletia a superfície branca em seus olhos.
            Nenhuma voz respondeu à pergunta da garota. A capela estava envolta em silêncio.
            — Entendo... Então você não sabe... Mas eles voltarão algum dia. Não é, senhor?
            A garota continuou sua conversa até então unilateral. O garoto ao seu lado também observava fixamente o caixão, como se não fosse estranho a garota estar conversando com ele.
            — Fico feliz em ouvir isso. Eu estava com tanto medo de não os ver de novo... — Disse a garota, respondendo mais uma vez à voz silenciosa. O garoto, que era cerca de um ou dois anos mais velho que ela, de repente falou, animado.
            — Umm, senhor! Hm, bem, uh... Quando a Ferret chegar, sabe, eu, uh... Você deixaria a Ferret... Quero dizer, sua filha... sair...
            Splash.
            Havia algo como o som de água. Neste exato momento, o garoto caiu no chão da capela como se tivesse sido arremessado por uma força invisível. Ele voou em um gracioso arco e caiu no chão.
            — Senhor! — A garota gritou para o caixão, e, preocupada, olhou para seu irmão.
            — N-não se preocupe, Hilda. Isso é entre mim e o visconde. — Gentilmente empurrando sua irmã para trás e se levantando, o garoto disse. Ele deu novamente um passo na direção do caixão.
            Então ele olhou para um ponto fixo adiante, assim como sua irmã havia feito antes, e repentinamente falou de novo.
            — Sim, senhor! Eu sei que isso deveria ser entre mim e ela! Mas dizem que se você quiser atirar no general, primeiro você deve atirar no cavalo... Eu, uh, não quis insinuar que o senhor é um cavalo! De qualquer forma, o que quero dizer é, o senhor permitiria que eu e Ferret... hã? Não a chamar pelo nome sem permissão? ...Uh, senhor! Sabe, eu estou praticando para o nosso futuro juntos. O quê? Você não pode confiar sua filha a alguém como eu?! Senhor, o senhor deveria ser pai dela! Amar e entender! O senhor não pode escolher o futuro dela como se... N-não, senhor! Umm, o que quer dizer com quem eu penso que sou para falar assim?
            O garoto divagava sem coerência, gesticulando como se estivesse em um show solo de comédia. A uma certa distância, era uma vista surreal, mas a garota chamada Hilda apenas assistia com um sorriso no rosto.
            — Eu sei, eu sei! Não, senhor. Isso não é sobre cavalaria nem nada assim! Como um homem, eu quero proteger minha dama de corpo e alma! ...Hã? O que quer dizer com testar minha determinação? Eu não conseguiria derrotá-lo, senhor! E-espere! Ainda não estou proooooo—
            Houve um esguicho da cor vermelha.
            Sangue jorrou no ar, preenchendo a capela em uma névoa fina.
            A garota observava enquanto seu irmão caía em uma poça de sangue, sem perder o sorriso do rosto. Ela parecia achar que a terrível cena que acontecia diante de seus olhos não fosse nada além de um mero teatro de fantoches.
            O caixão na capela estava coberto da luz do sol.
            O antigo caixão branco foi instantaneamente manchado por um esguicho de sangue.
            Sob o olhar das estátuas sagradas, sangue pingava da ponta do caixão, gota a gota.
            Pinga, pinga, cai.
            Pinga.
            Pinga.



Prólogo 2: O Garoto e a Garota dentro do Caixão

            Vermelho jorrava e pingava.
            Sangue jorrava e pingava.

Abril 2004. Em algum lugar de Yokohama, Japão.

            Permita-me contar sobre a minha família.
            Hã? Não, apenas as estrelas. Olhar para as estrelas durante a noite me lembrou de casa. É uma pequena ilha em algum lugar entre a Grã-Bretanha e a Alemanha, e o céu lá não é nada menos que deslumbrante.
            E quanto aos dias?
            Eu não posso dizer sobre isso. Eu nunca vi o céu durante o dia.
            Vamos, você já sabia disso, não sabia? Não, eu não estou zangado com você.
            Certo. Minha família, não é?
            Eu não vou dar uma grande lição da história da minha árvore genealógica nem nada do tipo. Eu acho que só há três pessoas na minha família, de qualquer forma.
            Eu tenho uma irmã mais nova — nós somos gêmeos, por sinal. Ela tem que me tratar como irmão mais velho só porque eu nasci alguns minutos antes. Não me leve a mal, mas fico feliz por ser mais velho que ela. Sabe, minha irmã sempre é tão verdadeira consigo mesma que de vez em quando alguém precisa ficar de olho nela.
            Ela tem seus defeitos —é orgulhosa e menospreza os humanos — mas acho que é apenas a forma que ela tem de se defender. Então eu entendo se você ficar bravo com ela. Mas, por favor, não a odeie por isso.
            Um título de nobre e uma linhagem especial são tudo o que temos em nosso nome. Minha irmã sempre tenta criar uma barreira ao seu redor porque tem consciência do fato de que ela é diferente. Está sempre dizendo a si mesmo “eu sou uma aristocrata”. Eu acho que seja bom que ela seja sempre cortês, mas não sei quanto mais dos seus “Honorável Irmão” eu consigo suportar.
            Acima disso, acho que estou no mesmo barco. Sim. Isso me incomoda também. Eu me sinto esmagado por toda essa pressão. E, se minha irmã está passando pelo mesmo que eu, então talvez o fato que ela nunca deixa isso transparecer significa que ela é muito forte.
            Quanto ao meu pai... Hã? Isso mesmo. Minha mãe biológica faleceu. Nossos verdadeiros pais foram assassinados antes que fossemos velhos o bastante para entender algo. O pai que nos adotou vingou a morte de nossos pais e nos acolheu como seus filhos biológicos — embora eu não saiba qual relação ele tem com nossos pais biológicos.
Meu pai? Ele é um cavalheiro entre os cavalheiros.
É o melhor que consigo fazer com meu vocabulário.
Não estou dizendo que ele é um aristocrata decadente nem nada desse nível. Bem, eu acho que ele consegue ser um pouco extremo. Mas, uh... Ele é cortês, para início de conversa, e ele tem classe. Ele pode ser um pouco dramático, meio que como os cavalheiros de cartola daquelas comédias, mas... é difícil dizer. Estou tentando dizer que respeito este cavalheiro... Isso mesmo, eu o respeito.
É diferente da forma que o respeito como meu pai. Eu também o respeito como homem. Sempre que converso com ele, me sinto mais calmo. É quase como se eu conseguisse me livrar da pressão que me sufoca.
Meu pai e minha irmã são opostos polares, mas eu os amo mais que tudo no mundo.
Exato. Eu nem preciso pensar sobre isso. Porque eu estou mesmo falando a verdade.
E... uh, é mesmo. Então, o que eu queria dizer é...
Eu valorizo minha família. E embora eu sinta que estou sendo esmagado sob este peso, eu não ressinto minhas circunstâncias. As vezes isso me deixa um pouco triste, mas acho que devo aceitar meu destino.
Então, o que me deixa triste?
Bem, podemos começar pelo que está acontecendo agora.
Meu sangue está fervendo. Eu não consigo controlá-lo.
Sabe, quando se está apaixonado por alguém... você só quer estar com esta pessoa, não é?
...Ah, você finalmente entendeu o que eu estou tentando dizer.
Então vou deixar claro. Há duas coisas que eu quero lhe dizer.
Primeiro, eu... eu acho que você tem uma beleza e tanto.
E segundo... eu gostaria de... bem, eu gostaria de sugar o seu sangue.
Não se preocupe. Eu serei gentil.


Noite.
Rejeitado de novo, Honorável Irmão?
Cale-se. Não é da sua conta.
A pessoa que você convidou não aceitou seu convite sabendo que você era um vampiro? E ela ainda teve a coragem de te rejeitar no momento da verdade!
Não faça essa cara. Você está me assustando. E além disso, eu ainda pareço muito jovem para seduzir de verdade uma mulher.
E eu admito que cometi alguns erros também. Quando eu disse que seria gentil, eu só estava tentando melhorar o clima.
Isso não é algo peculiar a se dizer?
Ainda... lhe falta conhecimento em assuntos assim. Mas mesmo assim, acho que meu rosto não estaria intacto se você não fosse assim.
Eu? Ser violenta com meu Honorável Irmão? É claro que não.
...As vezes você me assusta agindo assim. Mas eu já estou melhor.
Já está quase anoitecendo. Eu vou dormir agora.
Por favor, não mude de assunto.
Tudo bem. De que estávamos falando mesmo?
Sobre aquela humana que você graciosamente convidou. Como ela pôde rejeitar o aristocrata Relic von Waldstein, um mestre da noite? Mesmo que não tenha sido sua intenção matá-la, teria sido o bastante fazer contato visual com ela para que a hipnotizasse, ou você podia beber o sangue dela à força.
Esse tipo de coisa é comigo, sabe? E por favor, pare de me chamar de aristocrata ou essa coisa de “mestre da noite”. Claro, você vê isso em romances e afins, mas na vida real é bem embaraçoso.
Honorável Irmão, você deve mesmo tentar agir de uma forma mais refinada que aquelas criaturas plebeias—
E mais uma coisa! Eu sei que sigo isso todos os dias pelos últimos três anos, mas você pode parar com isso? Pare de agir tão formal. Nós somos uma família.
É justamente por sermos família que esse tipo de formalidade é necessário. Honorável Irmão, você é meu único parente de sangue. Você... é o único neste mundo a quem eu posso dar todo o meu respeito mais sincero.
Como eu disse, pare de falar sobre o mundo e sangue e família e tudo isso. Isso é o que os humanos fazem. Aquelas “criaturas plebeias” que você tanto menospreza.
Por essa lógica, nós também temos uma língua em comum e um coração que consegue sentir emoções! Por favor, Honorável Irmão. Não tente mudar de assunto com argumentos tão irrelevantes assim!
Tch... Eu tinha certeza que conseguiria te pegar com essa.
Além disso, nós temos nosso pai também.
No fim das contas, nem nosso pai tem o mesmo sangue que nós!
Ferret. Não me deixe com raiva.
Hm... Sim, nosso pai é alguém que eu realmente respeito, mas...
Haha! Lá vai você. Você deveria falar assim mais vezes.
...! E-eu só fui pega desprevenida. Eu não vou falar mais nada!
Não fique com raiva, Ferret. Só estou feliz que você não esteja falando mal de nosso pai.
...
Nosso pai, é? Não acredito que já faz um ano desde que deixamos nossa casa.
Talvez eu deva voltar logo. Eu gostaria muito de ver nosso pai de novo. E você, Ferret?
Farei como você desejar, Honorável Irmão.
Então apenas seja você mesma. Este é o meu desejo.



Prólogo 3: A Plebe ao Redor do Caixão

            O sangue fazia sons pegajosos.
            Vindo das sombras das trevas, era pegajoso.

Abril 2004. Um quarto no Castelo Waldstein, na ilha de Growerth, Alemanha.
           
— É bem feito para você. — Se arrastou o homem alto, que estava observando o teto com ornamentos ricos.
O teto era, de longe, a única parte do quarto que tinha tantos ornamentos na decoração. Toda a câmara era majestosa, como se tivesse sido retirada de um museu. A organização harmoniosa das pinturas entre os móveis luxuriosos erradicava qualquer pista de decadência vulgar. Também não havia luz alguma no quarto, e a escuridão era iluminada apenas pelo leve brilho das estrelas.
Com a luz da lua em suas costas, o jovem levantou os braços de forma dramática.
— Ah, eu devo dizer, devo dizer — embora você possa criticar minhas palavras com afirmações banais, eu devo dizer — Dane-se, seu desgraçado.
Embora fosse a calada da noite, os olhos do homem se incharam por trás de seu par de óculos escuros. Ele vestia uma camisa com uma caveira estampada nela e calças pretas. Sobre seus ombros havia uma jaqueta de couro preta. E diante do homem, que estava paralisado de tanto gargalhar, estava um simples e branco caixão. Não havia nada em sua superfície além das palavras “Gerhardt von Waldstein”, gravadas em vermelho.
— Você não vale o mínimo do seu nome ostentoso. Aquela sua idade louca é apenas um número, está me ouvindo?! — O jovem gritou, pisando na tampa do caixão.
— Como fosse uma resposta para ele, uma figura apareceu das sombras.
— Teehee! Mas Mestre Watt, você fez com que ele não ouvisse.
A pessoa que acabara de aparecer era uma garota com cerca de quinze anos, vestida como um bobo da corte. Havia um padrão distintivo pintado em seus olhos e nariz, mas a parte inferior de seu rosto estava puro. O chapéu vermelho que ela usava — e mais parecia com um gorro de natal — também fazia com que ela parecesse mais jovem do que realmente era.
— Ei, Palhaça.
— Sim? Sim?
— No momento em que a boba da corte se aproximou, o punho do homem voou em seu rosto, pintando de vermelho por cima de sua maquiagem.
— Guh!
— Cale sua maldita boca.
Afastando sua mão do rosto da boba da corte, o jovem chamado Watt balançou o sangue dela de sua mão. O sangue se espalhou pelo chão, mas não manchou o tapete vermelho.
E sem se preocupar em limpar sua mão, Watt pôs mais uma vez um pé no caixão.
Havia algo estranho sobre este caixão — algum tipo de resina fora aplicado no espaço entre a base a tampa, selando todas as aberturas.
— Nos conhecemos por tanto tempo, mas parece que acaba hoje. Hã, Conde?
Havia zombaria explícita no rosto de Watt. A boba da corte, com sua testa ainda sangrando, começou a gargalhar.
— Ahahaha! Mestre Watt, foi mais um erro! Gerhardt é um visconde!
— Me diga algo que não sei.
Watt, mais uma vez, lançou a mão no rosto da boba da corte, desta vez sem se virar.
— Ugh...
A força do ataque superou suas cordas vocais, prevenindo que ela gritasse. A boba da corte caiu dramaticamente no chão.
— Ahh... Isso dói muito, Mestre Watt...
Ela forçou uma voz distorcida a sair de sua garganta ensanguentada, rolando no tapete com dor. Mesmo assim, Watt continuou focado no caixão, pisando várias e várias vezes na tampa branca.
— “Conde” é mais que o suficiente para esses malditos aristocratas vampiros. — Disse, com sua boca formando um sorriso. Um conjunto de caninos incomuns brilhou sob a meia luz.
Como se servisse de sinal, o número de presenças na sala aumentou em um instante. Múltiplos pares de pés estavam sobre o tapete vermelho, mas a boba da corte ainda conseguiu rolar entre eles.
— Sr. Stalf. Irá amanhecer em aproximadamente três horas. — Um dos novatos disse, deixando claro seu respeito em seu tom de voz. Mas era o tipo de deferência reservada para um funcionário, e não para um mestre. Suficientemente, era um conflito com a atmosfera real da câmara.
O homem que acabara de falar com Watt vestia um terno cinza. Sua aparência era tão contraditória com a de Watt e da boba da corte quanto seu tom era para o ambiente. E não era só isso, os outros novatos eram todos excêntricos de uma forma ou de outra. Não havia nem mesmo uma sombra de união na aparência do grupo.
— Temo que o atraso não será tão favorável aos seus registros, Sr. Stalf.
— Danem-se esses oficiais. Não é como se eles tivessem registros decentes, de qualquer forma. Você ainda não consegue deixar de agir como um assalariado japonês, Mágico?
O homem, que foi chamado pelo apelido de “Mágico” ao invés de seu próprio nome, olhou para Watt, incomodado.
— Eu sou do tipo de pessoa que acha que a falta de uma pontuação numérica é precisamente o motivo que devemos nos esforçar para agradar nossos superiores.
— Cale a boca antes que eu vire um mágico amador e faça seu torso desaparecer. — Watt disse sem se virar para trás. O mágico recuou.
Em termos de aparência, o mágico era um homem simples de descendência asiática. Seu rosto inexpressivo tornava difícil julgar sua idade exata.
Como se estivesse zombando do asiático em silêncio, as figuras pela sala se moveram. Dentre elas, uma sombra particularmente grande caminhou até Watt, bloqueando a janela.
— Licença.
Surpreso pelo corte repentino da luz, Watt se virou para a janela.
— O que tenho que faze?
O homem que falou com ele era grande. Um verdadeiro gigante cuja cabeça quase alcançava o teto.
— ...? ...?! ...Hã?! Q-quem diabos é você?! Watt gritou. O Mágico deu um passo à frente para explicar.
— Sr. Stalf, esse é o novato que deixaram com a gente hoje aaaaghh?!
— E. Por. Que. Eu. Não. Ouvi. Sobre. Isso?
Para disfarçar sua surpresa, Watt chutou o Mágico na canela com o máximo de força que conseguiu.
— M-mas, Sr. Stalf! Foi o senhor que falou para eu deixar as introduções para depois!
Com lágrimas nos olhos por causa da dor insuportável, o mágico mancou até a porta e lentamente estendeu a mão para o moderno interruptor ao lado dela e acendeu a luz.
Com um clique, o candelabro se encheu de vida e iluminou a sala escura como se fosse o meio do dia. A atmosfera sinistra desapareceu, deixando para trás o que parecia a suíte de um hotel de luxo. As figuras de pé na sala fecharam os olhos por causa da repentina explosão de luz.
— Bem, Sr. Stalf. O novato se chama—hmmf!
A bota de Watt esmagou a boca do homem. O infeliz Mágico foi arremessado para a parede. Watt continuou pisando de novo e de novo com a sola no rosto do homem.
— Quem mandou você acender a luz? Morra, cérebro de merda! Você tinha que arruinar o clima, não é? Eu poderia me vangloriar um pouco mais, seu desgraçado! Morra, cérebro de merda!
Watt continuou a chutar o rosto do Mágico, seu ritmo o lembrava uma arma automática. De repente, a boba da corte, que parecia haver se recuperado por completo, sorriu e se intrometeu.
— Ah, Mestre Watt! Você falou “Morra, cérebro de merda!” duas vezes! Isso é terrível! O seu vocabulário, no caso!
Embora Watt estivesse de pé em uma só perna, ele profissionalmente girou sua perna e atingiu sua sola contra a cabeça da garota.
— ...!
A boba da corte começou a tropeçar, com sangue escorrendo de sua testa e pescoço.
O homem responsável pelo banho de sangue deu um passo para longe de suas vítimas e se aproximou do gigante, cuja forma completa não estava visível na luz.
O rosto do gigante estava coberto por uma barba grossa. A forma dele era grande e inchada, mas era impossível dizer se era gordura ou músculos que havia em seu corpo. De todas as figuras incomuns da sala, ele era o que menos combinava com o candelabro elegante.
é meu chefe, né? Prazer. — Ele disse devagar, e Watt levantou uma sobrancelha.
— Você é grande pro inferno. Você nasceu um monstro assim? Como conseguiu se esconder por tanto tempo?
— Bem, sabe...
Antes que o gigante conseguisse terminar, o corpo dele começou a desinflar como um balão, revelando a forma de um garoto que devia ter cerca de dez anos. O surpreendente novato estava vestido em roupas caras, completamente diferente do gigante maltrapilho que estava lá há um instante.
— Não tenho problemas em me misturar a multidões nesta forma.
O garoto cumprimentou Watt mais uma vez, sua voz, atitude e tom mudaram totalmente. Watt ouviu a nova informação com seus olhos estreitos sob a sombra.
— Seu maldito...
— Ou...
O garoto sorriu maquiavelicamente, mudando de forma mais uma vez.
— Talvez você goste mais disso.
Com uma voz incrivelmente sedutora, o corpo do garoto se tornou o de uma mulher sensual. Era como ver uma obra de claymation — o corpo dele se tornou uma pilha de lama, e se reformou em um piscar de olhos. A forma do esqueleto, a cor dos olhos, o nariz, a boca, e até mesmo as roupas nas costas do garoto.
As outras figuras, que estavam observando tudo desde o início, responderam à mudança com assobios e murmúrios. Mas Watt estalou a língua e levantou a mulher no ar pelo pescoço.
            — Hã? — Os olhos do Gigante → Garoto → Mulher se abriram de choque.
— Eu entendi o seu jogo. Eu entendo agora. Pode até mesmo dizer que estou chocado. — Watt encarou a mulher e disse ansiosamente. — ...Então, como realmente é a sua forma? Um pequeno aviso. Se você disser que se transformou tantas vezes que esqueceu sua verdadeira forma, eu vou te esmagar. Não preciso de subordinados sem cérebro que não conseguem se lembrar nem do seu maldito rosto.
Surpresa pelo imenso ódio de Watt, a criatura na forma de uma mulher se esforçou para apontar para a janela.
Como a sala estava iluminada pelo candelabro, o vidro refletia o interior como se fosse um espelho.
Watt comparou a aparência do ser na janela e da mulher que estava segurando, e então assentiu.
Todos os outros também olharam para a janela para ver com os próprios olhos, mas a mulher agitou a mão com aspereza. Cada janela da sala se quebrou.
Não havia sinal algum de que ela as tenha tocado, nem mesmo jogado nada nas janelas. Normalmente, os espectadores poderiam gritar, confusos com a cena, mas o grupo na câmara estava imperturbável.
— Então esse é o seu verdadeiro eu. É o fim para você, então.
— Hm, meu nome—
— Agora é a minha vez de me apresentar.
Ignorando o ser que se transformou de volta em um garoto, Watt sorriu e continuou.
— O nome é Watt. Sou o líder deste grupo. Duvido que eu goste de vocês algum dia, então só vou dizer sobre o que eu não tolero.
Ele saltou no ar e fez um quadrado no peito do garoto.
— Ugh!
O garoto foi arremessado na parede, com o ar retirado dele. O responsável por este feito sobre-humano continuou como se nada tivesse acontecido.
— Sabe o que me incomoda? Meus próprios lacaios tentarem me usar para aparecer.
E, sem olhar de volta para o garoto, ele subiu e pisou mais uma vez no caixão. Ele não se esforçava para esconder seu ódio pelo objeto, como se eles tivessem algum tipo de história juntos.
— Então permita-me continuar. Agora que penso nisso, já nos conhecemos por—
Enquanto começou seu discurso majestoso no caixão, Watt de repente percebeu um alvoroço acontecendo atrás dele.
— Incrível! Nunca vi ninguém que conseguisse se transformar em tudo.
— Quero dizer, metade dos caras daqui podem se transformar em morcegos, mas enfim.
— E suas roupas? Elas fazem parte do seu corpo?
— Diga, qual o seu nome?
— Eu já vi várias pessoas como você em quadrinhos americanos!
— Acho que são mais em quadrinhos japoneses recentemente, não é? Mangás e anime.
— É chamado de “Japanimação”.
— Mas esse não é o jeito que só os japoneses chamam?
— Animação de “japas”, é? Que auto depreciação.
— Calem a boca! Vocês estão me irritando!
— Vire aquela garota de novo. Mas sem roupas desta vez.
— Meus amigos, esperem! Uma mulher nua só vai acabar de vez com a ordem!
As outras figuras na sala se reuniram ao redor do garoto caído. Watt usou ainda mais força no pé que estava sobre o caixão, atônito.
— Por que... todos os meus lacaios são RETARDADOS?! Que diabos os oficiais têm contra mim?! — Watt reclamou e ajustou seus óculos de sol. O Mágico, com seu rosto ainda sangrando, falou.
— Eu disse que era importante agradar os superiores, não disse?
— Cale a boca.
Watt se preparou para chutar o Mágico mais uma vez. Mas—
— Está na hora. Deixando-o de lado, Sr. Stalf, não podemos continuar aqui de conversinha. — O que Watt chutou foi o ar. O Mágico já estava atrás dele, sussurrando em seu ouvido.
— Maldito...
Enquanto Watt rangia os dentes, o Mágico pegou um cachecol de seu bolso. Abrindo o lenço laranja em seu rosto, ele calmamente recitou um feitiço.
— Um, dois... três.
Ao contar até três, ele elegantemente lançou o cachecol. Os ferimentos e manchas de sangue em seu rosto foram limpos e substituídos por sua aparência pura.
No momento em que o truque acabou, Watt lançou seu punho no estômago do Mágico. Mas o soco foi bloqueado pela mão que apareceu do torço do asiático.
Surpreso, Watt descobriu que não conseguia mais mover sua mão.
— Voilà. Como pode ver, não teve nenhum truque, aparelhos nem nada. Ficou surpreso?
O braço, de fato, pertencia ao Mágico. Watt não havia percebido que a mão que não estava segurando o cachecol não estava na manga que deveria. O Mágico colocou seu braço dentro de sua camisa quando Watt estava focado no cachecol.
— Sugiro que não exagere, Sr. Stalf.
Watt franziu a testa. O asiático sorriu mecanicamente como se estivesse lhe repreendendo.
— Sim, você tecnicamente é meu superior. Mas em termos de poder vampírico, você é o mais fraco dentre todos reunidos aqui hoje. Eu estava tentando evitar seu rosto até agora, mas temo que o momento finalmente chegou. Se me der licença...
Watt lutou para dar um golpe em seu subordinado, sem sentir o mínimo de desamparo dele.
— Eu não acabei de dizer? Que não tolero ser usado para aparecer?
— É exatamente por isso que estou fazendo isto, Sr. Stalf. Estou me permitindo ser um pouco mais reservado para tentar criar uma atmosfera de trabalho positiva.
Um momento depois, o Mágico estalou os dedos e agitou a bainha de sua jaqueta. A jaqueta de repente aumentou várias vezes o seu tamanho, como se estivesse se tornando uma capa, e desapareceu no ar — levando o mágico consigo.
Com isto servindo de sinal, as outras figuras na sala também desapareceram uma a uma. Algumas derreteram no chão e outras se dissiparam no ar. Enquanto outras, como se nem mesmo existissem.
Ao invés de ver a sala ficar vazia aos poucos, Watt sentiu a presença se esvaindo da sala.
Finalmente, apenas ele e a boba da corte restaram na sala — enquanto o primeiro estava em silêncio, a segunda rolava no chão, se lamentando.
— Ei, Palhaça. Já basta.
— Ai, isso dói... Hã?
Ela parou o que estava fazendo e olhou curiosa para Watt. O homem não olhou de volta para ela, seus olhos continuavam fixos no caixão.
— Pare de fingir. É hora de você partir. — Ele disse, sem deixar nem uma sombra de emoção surgir em seu rosto.
A boba da corte parecia bem triste ao ouvir essa observação. E como se por obediência, o rosto cortado dela, a testa e pescoço feridos, e até mesmo o sangue escorrendo de suas feridas ficaram claros como fumaça, e se reformaram. Seus ferimentos haviam sumido. Era como se ela tivesse sido curada — era mais como se a carne ao redor dos ferimentos se dissipasse por um momento e reformassem logo após.
— Esqueça. Você pode ser muito boa em virar fumaça, mas nem mesmo você é imune à luz do sol.
A boba da corte hesitou, mas logo assentiu e desapareceu como uma névoa — literalmente transformando seu corpo em neblina.
Sua forma estava clara como uma miragem. Neste exato momento, a pele clara dela, sua maquiagem colorida e roupas berrantes se dissolveram em uma neblina multicolorida. Ela logo desapareceu no ar.
Apenas o homem e o caixão restaram na sala.
O homem chutou a tampa do caixão, sem permitir que nenhuma expressão se formasse em seu rosto.
Ele chutou com pouca força, como uma criança chateada, como um brinquedo de corda.
Baque. Baque. De novo e de novo.
Baque. Baque. Baque. Baque.
Na hora em que a luz do sol começou a passar pela janela, Watt já havia parado de chutar o caixão e se esticado.
Então ele olhou de volta para o caixão, com um sorriso fresco.
— Estava ouvindo, Conde? Aquele Mágico desgraçado disse que “em termos de poder vampírico, você é o mais fraco dentre todos reunidos aqui hoje”. Isso não te faz rir? Hã?
Ele dramaticamente abriu os braços e andou na direção da janela.
— Humilhado por meu próprio subordinado, e receber o dó de uma palhaça pirralha... Ela acha mesmo que eu não notei? No fim, ela só é uma pirralha. Uma imbecil... Então o que eu sou, se recebo empatia de alguém como ela?
O homem pisou nos cacos da janela quebrada, aumentando aos poucos o volume da voz.
— Isso mesmo. Eu sou uma presa pequena. Eu admito. Nada além de um rebelde sem poder. Um cão. Inferior. E literalmente um pedaço mal feito de inutilidade. Você também acha isso, não é? Mas pense sobre isso. Você acabou de perder para este mestiço.
Permitindo que a luz do sol o cobrisse por completo, Watt formou um sorriso.
— Você perdeu, Conde! Não sei por quantas décadas, séculos, ou talvez milênios você viveu a mais que eu, mas sua excelência vampiresca acabou de perder para mim! Um dhampir mestiço que só tem metade do seu poder e tempo de vida! Você pode chorar e se espernear e chamar a mamãe e murmurar como um idiota o quanto quiser e ainda não será o suficiente. Role em uma fossa de humilhação e me deixe ouvir seu desespero e lamento. Continue tropeçando na escuridão eterna deste caixão!
Após gritar com o caixão, Watt recuperou sua compostura e se sentou na tampa.
— Mas vou deixar isto bem claro, Conde. Eu não desprezo minha herança. Sou grato aos meus pais. Meu pai, um simples humano, e minha mãe, uma simples vampira. E no fim, eles deram à luz a um mestiço meia boca, mas...
Ele parou por um momento e então formou um sorriso atroz.



— Sabe, sou grato à minha própria fraqueza. Porque eu sei como é bom escalar do precipício.
Ele se levantou com energia e virou como se estivesse dançando.
— E quando se sente esse prazer, não há mais volta. Então eu vou começar a escalar a partir de agora, Conde. Com sua derrota como minha base! O fato de ser o mais fraco significa que eu posso sentir a sensação do meu crescimento mais que ninguém! Fique aí e me observe. Me veja batalhar e escalvar como um fracote desagradável! Você pode ficar aí e esperar a sua derrota patética e inevitável...
Após sua longa e dramática declaração, Watt acrescentou:
— Eu vou seguir em frente. Eu vou matar aqueles oficiais, qualquer um que ficar no meu caminho, ou me menosprezar. Eu vou matar todos eles—
E logo antes de sair pela porta como um humano normal, ele lançou um último comentário.
— E no final, eu vou matar seus amados pirralhos.
Baque.
O caixão selado balançou.
Watt se virou na direção dele, com preocupação clara em seu rosto, mas o caixão não se moveu mais que isso. A sala estava envolta em um silêncio macabro.
Muitos segundos depois, ele sorriu verdadeiramente e acendeu as luzes elétricas.
— Então você finalmente ficou bravo. Estou surpreso que você ainda esteja consciente após estar trancado aí dentro por três horas, mas devo lhe agradecer. Estou me sentindo bem melhor agora. Não, bem, pessoalmente eu não queria ir tão longe. Eu queria derrubá-lo como um homem, mas ordens são ordens.
Tirando vantagem da ausência de seu subordinado, Watt se permitiu mostrar sua verdadeira cara.
— Eu estava só blefando. Assim que eu terminar com aqueles oficiais, a primeira coisa que eu vou fazer é te tirar daqui. Aí então eu vou matar seus pirralhos enquanto você assiste.
O caixão balançou mais uma vez, como se estivesse reagindo às palavras finais de Watt. Watt gargalhou e fechou a porta por fora.
— Até lá, tenha um bom e longo descanso, Conde Cavalheiro.
Não havia mais nenhum passo na sala iluminada pelo sol. Apenas o caixão silencioso permanecia.



Prólogo 4: A Garota Fora do Caixão

Suga, suga — sangue escorria.
            Lábios molhados — suga, suga.

No escuro.
           
Um homem solitário corria por um lugar onde estava completamente escuro. Era o interior de um edifício? Uma caverna? Ou uma floresta profunda e escura onde nem mesmo a lua conseguia brilhar?
“AAAAAAHHH!”
Com um grito sem importância, o homem avançou na escuridão.
Ele não estava indo a um destino, mas se movia como se estivesse com medo de algo que poderia estar atrás dele. Seus pés tropeçavam no chão várias vezes, atados pelo medo de se mover mais rápido que um qualquer humano conseguiria.
Embora o resto de seu corpo estivesse tomado pelo terror, seus olhos demonstravam consciência clara.
Desconfiança, ira, e desespero infinito.
Por que eu? Por que eu?
Por que, por que, por que?
Enquanto ele permitia que seus pensamentos se mostrassem claramente em seus olhos e es odiava por ter se encurralado a tal ponto, até sua injúria foi devorada pelo desespero que o seguia.
De repente, a escuridão deu lugar à luz. A lua espreitava entre as nuvens, levemente iluminando o mundo.
Embora a área estivesse completamente escura até alguns momentos atrás, o homem estava correndo em uma linha quase reta pela floresta, considerando que ele sabia perfeitamente seus arredores no escuro.
“AAAAAAAHHHHH!”
O homem inumano deu um grito inumano. A voz dele ecoou pela floresta como uma onda sônica.
E em um instante, o corpo e voz dele ficaram escuras como uma sombra, se espalhando por todas as direções.
Parecia um pouco com a imagem de um cardume se espalhando por causa de um ataque de tubarão, e estavam se reunindo de novo, não peixes, mas inúmeros morcegos pretos.
Ao invés do rosto canino dos morcegos de frutas indianos, estavam mais próximo de serem morcegos vampiros, com aqueles narizes amassados daquele jeito.
Mas qualquer um que conseguisse observar a cena em primeira mão negaria ambas colocações. Talvez nem chamassem essas criaturas de “morcegos”. O casaco preto inatural era um dos motivos, mas o maior era a aparência dos olhos deles.
O bando que surgiu na fuga do homem tinha, sem exceção, os mesmos olhos que o homem. Os olhos dos morcegos não pareciam com os de animais. Pareciam mais que olhos humanos foram transplantados à força nos corpos dos morcegos. Essa anormalidade seria o suficiente para dar arrepios na espinha de alguém. Era mais que o suficiente para provar que esta “criatura” era um monstro — um vampiro.
Mas aquilo estava esperando por ele.
O desespero que o seguia estava esperando por este exato momento.
Assim que o corpo do homem estava prestes a se dissipar por completo no bando, ele sentiu um impacto afiado em suas costas.
O estranho choque afetou não apenas o homem, mas também os incontáveis morcegos que estavam espalhando a forma dele. De certa distância, poderia até parecer que uma grande corrente de água estava fluindo. Os objetos lançados pelo seguidor levaram-se até as costas de cada um dos morcegos.
Um grito que transcendia as habilidades auditivas humanos começou a ecoar da boca das dezenas de morcegos.
Um momento depois, cada um deles caiu impotentemente no chão da floresta.
O que é isso?! O que acabou de me atingir?
Os morcegos caídos não tinham forças suficientes para se reagruparem. Mas a consciência do vampiro estava desesperadamente tentando entender o que estava acontecendo.
O impacto que atingiu seus corpos espalhados — as costas dos morcegos — deu lugar a uma dor fria que perfurou todos eles até a barriga.
O que... que diabos está acontecendo?! Com o que estou sendo perfurado?! Esta cor. É prata?! Não. Minhas células não estão sendo destruídas. Se acalme. Se acalme. Foque e coloque forças nestas asas e recupere e se transforme em um lobo, mas preciso me recuperar se quiser me transformar de novo não. Não. Por favor, se eu conseguir tirar pelo menos um morcego daqui—”
O vampiro desesperadamente entrou em conflito contra o desespero que se aproximava. Mas ela surgiu da escuridão como se zombasse dele.
Os morcegos se debatiam no chão.
Antes que o homem conseguisse reorganizar seus pensamentos, uma perna magra pisou em um dos morcegos, com seu tornozelo fino envolto em uma bota larga e rugosa usada para escaladas.
POR FAVOR, NÃO!
O homem gritou, não de dor, mas de pânico. Mas como um grupo de morcegos, não conseguiu nem mesmo dizer as palavras em uma voz humana — tudo o que alguém conseguiria ouvir era o som de um chiado.
O “desespero” observava a cena estoicamente e falou com o homem.
— Melhilm Herzog. Você tem todo tipo de habilidades, mas se transformar em neblina não é uma delas.
Enquanto ouvia a descrição mecânica de informações pessoais, a mente do homem caiu ainda mais em desespero.
Como ela sabe o meu nome? E como ela sabe sobre minhas habilidades?! Como uma garota humana poderia saber tanto sobre mim?!
O desespero iluminado pelo luar era uma jovem com características bonitas, típicas de descendência asiática.
Foi ela quem perseguiu o vampiro chamado Melhilm.
Embora ele devesse ser muito mais forte que uma humana, pela primeira vez em sua vida ele sentiu o verdadeiro medo, ao ver esta garota que parecia ser ainda mais frágil que muitas outras de sua espécie.
Era difícil engolir esta sensação de humilhação, mas logo ele foi tomado por outra emoção.
Quem é esta garota?! Uma mera humana uma humana sem poderes como ela conseguiu se mover mais rápido que eu mais forte que eu por que meus poderes não funcionam por que por que por que—”
No início ele suspeitou que ela também era uma vampira, mas a garota diante dele tinha um cheiro puramente humano.
Mesmo que ela seja uma dhampir como o Watt ela é muito forte! O que é isso como algo assim poderia existir por que minha pesquisa já está quase completa e então nós seríamos reverenciados como lendas e mitos meu sonho tão perto tão perto—”
Em uma tentativa de afastar o desespero que o devorava, Melhilm tentou focar seu pensamento em outra emoção.
Esta humana que conquistou a vitória sobre um vampiro — que tipo de expressão ela tinha? O homem derrotado usou um de seus morcegos para olhar nos olhos desta mulher com seus próprios olhos humanos.
E seu desejo foi concedido.
No rosto da garota não havia o olhar mecânico de uma obrigação nem uma expressão de raiva, mas de excitação. Os olhos dela enquanto olhava para Melhilm de forma inferior estavam largos e expectantes como os de uma criança na noite de Natal.
Enquanto Melhilm acalmava as turbulentas emoções em seu coração, ele focou sua consciência em olhar para o rosto da garota através dos olhos de um de seus morcegos. Ela repentinamente fechou os olhos devagar, com um sorriso em seus lábios.
— ...Obrigada pelo alimento... —
As palavras dela foram ditas em um idioma estrangeiro que Melhilm não entendia, mas tudo ficaria claro muito em breve. A garota pegou o morcego que ele estava usando para observá-la e o aproximou de seu rosto.
Ela deu um olhar para os sinistros olhos humanos do morcego. Embora incontáveis emoções estivessem envoltas em seu rosto, a raiz de tudo isso sobre o que era o medo intenso ainda estava por vir.
Assim que ela notou isso...
A garota arrancou a pequena cabeça do morcego com os dentes, sem hesitar.
Com alegria, uma enorme alegria.
AAAAAAAHHHHHHH!
O vampiro não teve nem mesmo tempo para desviar a consciência do morcego antes de sentir a sensação de sua cabeça ser devorada.
Era uma sensação em uma escala completamente diferente de uma simples dor. Sua psique foi atingida ao mesmo tempo pela sensação de perda, e algo sendo sugado de seu corpo como uma fonte de energia.
No meio da tormenta da infinita agonia, o homem finalmente entendeu o que esta garota era, e gritou:
Uma Devoradora! Então você era isso! Como uma humana inferior poderia—”
Os gritos finais do vampiro Melhilm Herzog ecoaram dos morcegos na forma de ondas supersônicas, mas foram perdidas para a escuridão e nunca chegaram aos ouvidos de ninguém.
Quando ela terminou de devorar um morcego, a boca dela já estava coberta de sangue.
Então ela pegou um segundo morcego sem hesitar por nem mesmo um momento.
Os morcegos, cada um deles espetados nas costas com garfos de metal, agonizaram e se debateram ainda mais intensamente que antes. Mas os garfos presos profundamente em suas barrigas não os permitiriam se mover, enquanto todos eles se desesperavam e esperavam sua vez.
É claro, a consciência de todos os morcegos pertencia a um único vampiro.
Percebendo isso ou não, a garota comeu a cabeça de outro morcego e bebeu seu sangue.
Embora a imagem do sangue descendo por seu queixo fosse aterrorizante demais para suportar, era ao mesmo tempo uma imagem surpreendentemente harmoniosa sob o luar.
Ela se parecia muito com um vampiro dos livros de histórias.

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