quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Himitsu ~Kuro no Chikai~ [Capítulo 2, Parte 3 - As mudas]

— Não.
— Você deve.
— N-ã-o.
— Vo-cê de-ve.
— Nãonãonão!
— Vocêdevedevedeve!
— Nãonãonãonãonão!
— Vocêdevedevedevedevede...
— Eu disse não!! Ugh!!
A longa e infantil discussão entre “não” e “você deve” terminou com o “não” final de Rin. Era mais uma das batalhas sobre as “produções” que as duas sempre tinham durante os preparativos na mansão Cryinpt. A batalha entre Rin, o material perfeito e de alta qualidade, e aquela que se gabava por ser a costureira mais talentosa de toda a Velcant, Lily, ficou intensa de uma forma que nunca havia acontecido durante todo o ano em que elas se conheciam. Isso era certo. O tema de hoje era—
— Mesmo que eu morra, eu nunca vou usar um vestido preto com babados assim! Sem chance!
— Minha nossa! Que coisa horrível de se dizer! Isso é um mal presságio!
— É porque eu não gosto!
— Mesmo assim, é um exagero dizer em “morrer” por causa de uma coisa dessas!
— É uma expressão! Ou seja, eu odeio tanto que prefiro morrer. Em primeiro lugar, quão trabalhoso você acha que é quando um anjo tem que lidar com a vida após a morte de um único humano?! Eu não quero ouvir isso de alguém que não sabe nada sobre... coisas assim!
— Hã...? Vida após a morte?
— ...! Ah! Não, é que... você sabe, tenho certeza que mesmo que depois que as pessoas morrem, devem ter muita coisa para tratar. O que importa é que isso é o quanto eu odeio!
Humanos normais provavelmente não saberiam o que os anjos precisam fazer quando um humano morre. Além do mais, deveria ser raro um humano até mesmo pensar em tais coisas. Do ponto de vista do anjo que disse algo descuidado, o pensamento de Lily, uma humana, partiu para um estado de questionamento, com uma expressão questionadora.
— Se anjos existissem, tenho certeza que teriam muito trabalho, mas esse ser o motivo pelo qual você prefere morrer a usar as roupas... E eu ainda me dei o trabalho de usar o material raro do Mercado Lustroso. É bem difícil de conseguir algo assim, sabe? O dono da tenda de tiro ao alvo estava bem apegado a isso.
— Eu não gosto do que não gosto!
— Oh!
Parece que Lily perdeu a paciência desta vez. Até agora, a maioria de suas vitórias foi por causa de informações confidenciais que Miku lhe dava ou doces para convencer Rin. Mas, desta vez... Lily suspirou, decepcionada, e deixou o closet. O banquete, que havia sido planejado há uma semana, tinha um código de vestimenta formal. Rin frequentemente visitava a mansão como uma hóspede, e era sempre tratada como uma irmã mais nova de Miku. Por esse motivo, pediram que Rin se vestisse especificamente para o banquete, mas não importa o que acontecesse, ela se recusava a usar esta roupa.
O único código de vestimenta formal do Reino de Alphine era estar com vestimentas completamente pretas. Em Alphine, a cor negra era tratada como uma cor real, e para as reuniões e cerimônias no palácio real, nobres e aristocratas priorizavam a cor preta como roupas formais; este costume continuava pelos últimos trezentos anos. Há trezentos anos em Velcant, antes dos maiores poderes atuais do leste e do oeste serem fundados, havia uma área onde tanto países grandes quanto pequenos estavam batalhando pela supremacia. No meio disso, Züscheno III, que reinava o reino de Alphine na época, pensou em diversas leis para reforçar seu país e seu povo. Destas, havia uma lei que requisitava que todos se vestissem completamente de preto e momentos de guerra.
De todas as cores, a preta é a única que não pode ser tingida por outras, e sempre consegue ultrapassar a impenetrabilidade. Por outro lado, conseguia tingir toda e qualquer outra cor. Züscheno III pensava nisso como um símbolo de seu poder. Para aumentar a moral dos seus soldados e outras pessoas na guerra prolongada, ele criou esta lei. A intenção desta operação cultural que ele planejou era servir como um suporte psicológico, mas como foi profundamente apoiado pelas pessoas da época, o costume desta cor ser a mais suprema continuava até hoje.
Lily tentou explicar brevemente o progresso da história e da cultura de Alphine, mas Rin não estava ouvindo nada.
Um banquete, em que nobres de vários países participariam, acontecerá na mansão Cryinpt na semana seguinte. Miku e a chefe da família, naturalmente, assim como Lily e os outros residentes da mansão deveriam estar formalmente vestidos todos de preto. Não importa quão livre esta nobre dama seja, ela não conseguiria ser honrada como uma Cryinpt em suas habituais roupas brancas. Lily suspirou com uma expressão genuinamente incomodada em seu rosto.
— ...Se você continuar sendo tão desobediente assim, a Lady Miku não vai mais gostar de você!
Uma contorção.
As orelhas de Rin reagiram de uma forma tão previsível ao ouvir a palavra “Miku”, que quase pareciam emitir um som. Lily apenas murmurou isso como uma má perdedora, e não esperava que ela fosse ouvir isso. No mundo humano, parecia que isso era conhecido como “orelhas infernais”. A expressão apenas significava que alguém tinha uma habilidade incomum de audição, mas por causa da palavra “inferno”, não causava uma boa impressão nela.
— Em primeiro lugar, você sempre fala sobre “produções”. Por que você é tão persis... quero dizer, hm... apaixonada por isso?
Embora Rin tenha perguntado isso bruscamente, os olhos de Lily brilharam como se ela esperasse por essa pergunta. Ela pigarreou de forma pomposa enquanto ajustava seus óculos que não existiam. Quando Rin percebeu que não deveria ter perguntado isso, Lily já havia aberto a boca.
— A produção... é a forma suprema da arte. Em outras palavras, é a arte da criação, Lady Rin.
— Hã?
Rin inclinou sua cabeça para o lado, confusa.
— Ah... Oh, sim, eu sei. Lady Rin, vou explicar de forma simples, rápida e cortês, para você entender sem problemas.
— ...
Rin olhou para Lily, levemente desapontada. Embora ela esteja vivendo há mais tempo que esta jovem, Lily sempre agia como se fosse a mais velha, e falava como se fosse uma irmã mais velha.
— Vejamos... Lady Rin, você acredita na existência de “Deus”, correto? Deus criou este “mundo”. Em outras palavras, é uma criação dele. Este mundo “começou” no momento em que foi criado. E até mesmo agora, o mundo continua. Ou seja, significa que a criação ainda não está completa. Por isso que eu, também, quero continuar a pintar os diversos matérias deste mundo com as mais variadas cores... Eu quero dar forma a eles. O que estou dizendo é que eu quero pintá-la... pintar o mundo.
Por um momento, as palavras sinceras da garota ficaram presas em seu coração. Ela queria colorir uma parte do mundo. Mesmo que, por acaso, este seja a tela de sua pequena vida como um simples ser humano, continuando sempre incompleta, pequena e tumultuada.
Rin se sentia, de certa forma, comovida pelas “palavras humanas de Lily”. Ela pensava sobre isso. Até agora, o que eu já colori? Qual é a cor do meu coração neste momento?
Por qual motivo eu estou “viva” agora mesmo?
Há muito tempo, lhe perguntaram algo similar. Mas, naquela época, até mesmo o significado desta questão lhe era vago, e ela não pensou muito profundamente sobre isso.
Rin saiu de seus pensamentos e levantou a cabeça. Lily estava olhando para ela com breve preocupação. Ela estava com ambas as mãos apertadas em punhos desde que ela começou seu discurso empolgado; parecia a posição de alguém que acabou de vencer uma luta de socos.
— Seu mundo é tão maravilhoso. Sua cor é... elegante, brilhante, corajosa, mas ainda é calorosa... Como se fosse dourada. Mesmo na parte decorativa da costura, apenas por colocar um pouco de dourado, a aparência geral melhora muito.
— ! É... é mesmo? Por algum motivo, isso me deixa embaraçada. Ah, sua cor é amarela, Lady Rin! Porque as pessoas conseguem se animarem só de vê-la... Mesmo nos dias nublados, sua presença faz os arredores brilharem muito.
Por um momento, as duas se encararam em silêncio. Como geralmente não tinham muitas conversas sérias, elas não estavam acostumadas com este tipo de situação. Pelo contrário, elas acabaram elogiando uma à outra há um tempo, então pensando nisso calmamente, era bem embaraçoso. Incapaz de suportar esta atmosfera por mais tempo, Rin propositalmente escondeu seu embaraço fugindo do assunto.
— E-enfim, voltando ao assunto! Não tem nada a ver com isso... Não importa quão maravilhosa sua produção seja, eu ainda não disse nem mesmo uma palavra sobre me tornar seu material.
Com uma expressão leve, Rin assentiu para seu próprio argumento.
— E além disso... — focando em um ponto, ela olhou para Lily com uma expressão sombria. — Eu odeio a cor preta.
Essas palavras simples fizeram Lily recuperar a respiração e suspirar. Palavras simples que expressavam os verdadeiros sentimentos deste anjo. Devido à intimidação que mudou o clima em poucos segundos, Lily parecia completamente sobrecarregada.
— Ah... D-desculpe. Eu falei demais...
Notando a expressão assustada de Lily, Rin apressadamente se desculpou.
— Hm, não é que eu odiei o modelo que você preparou nem nada do tipo! Eu achei este vestido muito adorável, de verdade. Mas eu não posso vesti-lo. Por causa... de algumas circunstâncias com a minha família. Sabe, a minha família é meio diferente! Neste país, preto é a cor do vestido formal, não é? Mas no meu país, preto é visto como uma cor ominosa. Não... é mais que isso; é quase um tabu. Por isso, se eu vestisse estas roupas e minha família me visse... Ah, em particular, se fosse meu irmão mais velho que visse... Só de pensar, eu sinto calafrios. — Quando disse isso e imaginou seu “irmão mais velho”, Rin abaixou a cabeça.
— Entendo... Não sabia que você tinha um irmão mais velho, Lady Rin... Ah, vamos deixar esse assunto de lado por enquanto. Se é o caso, é uma pena... mas acho que não tem outro jeito.
Como se para quebrar a atmosfera séria, uma batida modesta podia ser ouvida na porta. Após dizer “entre”, lá estava a garota que Rin estava esperando por todo este tempo.
— Miku!
Rin parecia ter se esquecido completamente de sua conversa com Lily, e correu para onde Miku estava. Para começar, hoje era um dia de folga do trabalho no Paraíso, então ela veio visitar Miku pela primeira vez em muito tempo. Após esperar por toda a manhã, era difícil esconder sua felicidade ao finalmente conseguir vê-la.
— Sinto muito, Rin. Parece que... eu a fiz esperar muito tempo.
Como sempre, o sorriso de Miku parecia uma flor desabrochando, mas, de alguma forma, parecia meio tenso. Havia acontecido algo?
Miku brevemente mostrou as lembranças que comprou: para Lily, um laço de tecido feito de uma seda de alta qualidade, e para Rin, doces que foram feitos em formas únicas. Com sorrisos alegres, as duas correram para fazer os preparativos para o chá. Rin já havia começado a estufar suas bochechas com os doces especiais que Miku trouxera.
— Falando nisso, Lady Miku, sobre o banquete que está por vir... Não importa o que eu fizesse, a Lady Rin se recusava a vestir o modelo que eu preparei para ela...
Enquanto servia o chá, Lily contou à Miku sobre os acontecimentos de hoje com uma expressão pensativa. Rin engoliu os doces que enchiam suas bochechas, e olhou desconfortavelmente para as duas.
— Mas...!
— Minha nossa. Rin, você não gostou desta roupa?
— Eu gostei, sim... Estaria tudo bem se não fosse preta.
— Isso é um impasse... Embora não seria um problema se não fosse acontecer aqui.
Se fosse uma recepção simples e casual, um vestido formal normal seria aceitável.
— Tudo bem, então. É uma pena, mas... Eu não participarei desta vez, já que não quero lhe causar nenhum problema, Miku. Você vai fazer outra festa algum dia, não é?
Rin murmurou isto, um pouco desapontada.
— Na verdade, Rin... E Lily, também. Sobre o banquete... Eu tenho... algo importante a dizer.
— Hã? — As duas disseram ao mesmo tempo. Miku olhou para ambas com uma expressão levemente perplexa.
— Hm... Nós queríamos manter segredo de todos por mais um tempo, mas... Eu... vou me casar com o filho do Visconde Iceburg.
— C-casar...?!
No quieto fim de tarde, suas vozes surpresas ecoaram. O chá em infusão exagerada estava morno na chaleira, e ficou um pouco amargo devido às folhas mescladas.
Era o início da noite, e seu característico azul escuro se expandia no céu meio tingido de laranja. Além dos portões principais da mansão Cryinpt, uma das mais prestigiadas desde a fundação de Alphine, diversas carruagens continuavam a ir e vir. Damas vestidas em trajes estupendos deixavam as luxuosas carruagens, e cavalheiros trajados em ternos extravagantes as escoltavam com gestos elegantes. Logo assim que subiam as escadas de pedra, um mordomo respeitosamente abria a porta para eles, e se curvava com postura perfeita. Esta cena se repetiu diversas vezes até agora — os cômodos foram limpos e decorados mais que o habitual, e empregadas ágeis estavam ocupadas trabalhando. Hoje, centenas de nobres de toda a Velcant se reuniam na mansão Cryinpt.
Após passar pelo hall de entrada e subirem a grandiosa escadaria no centro, havia o grande salão que era o palco do banquete. Diversos nobres já estavam se socializando. Se você olhasse ao redor da sala elegante e real, veria que metade das pessoas estavam vestidas de preto. O costume da cor preta ser a principal em eventos de alto prestígio estava se provando verdadeiro. As pessoas que vinham do Reino de Folle, ao leste, e o Reinos de Violente, ao oeste, vestiam seus modelos coloridos, mas como se para homenagear os costumes de Alphine, a cor preta era, sem exceções, usada em algum ponto de suas roupas ou como um acessório. Sem guerras entre os três países pelos últimos cinquenta anos, todos os governantes que aqui se reuniam estavam conversando calmamente. Mas, por causa dos costumes e características de seus países, cada um deles tinha seu próprio estilo de vestimentas e forma de agir.
Observando como as pessoas dançavam, distantes, e conversavam pacificamente, ela se inclinou contra a parede. Embora as escondessem de vista, o fato que suas asas estavam apertadas sob estas roupas humanas não poderia ser ignorado. Tocando suas costas com as costas da mão, ela suspirou profundamente pela enésima vez hoje.
— Lady Rin, se você continuar suspirando assim, vai arruinar seu belo rosto!
Animada como sempre, Lily repentinamente falou ao seu lado. Apenas com uma breve encarada, ela parecia retornar o olhar com uma expressão preocupada.
— Isso não é verdade... Hm, na verdade, é meio que... Não, acho que assim está ótimo.
Com um olhar sério, Lily se aproximou de Rin, encarando-a. Como se estivesse a absorvendo, Lily a observava da cabeça aos pés e, de alguma forma, isso deixou Rin mais desconfortável que o normal.
— O que há com você...? Algum problema?
Lily sempre a elogiava sem parar, não importa o que ela vestisse. Mas por algum motivo, ela estava a encarando de forma rígida. Ela não se sentia bem? Pensando nisso, Rin não conseguia evitar notar que seu rosto estava vermelho desde um tempo. Ela ouvira que, no mundo humano, idiotas não pegavam resfriados¹, então ela provavelmente estava bem.
— Hm... Lily?
Quando ela estendeu a mão até seu rosto róseo, por algum motivo, ela sobressaltou e se afastou. O que estava acontecendo?
— O que houve? Você não parece estar bem. Você pegou um resfriado ou algo assim?
— N-não. Não é nada. Eu só deixei meu coração desviar um pouco.
— ?
 Ainda vermelha, ela olhou para a esquerda e para a direita, tossiu em silêncio, e continuou.
— Incidentalmente... Embora tenha sido contra sua vontade, suas roupas hoje... combinam muito bem com você.
Falando em “suas roupas hoje”, Rin observou seu reflexo na janela que cobria toda a altura da parede. Feito do melhor material, o sofisticado terno preto era a peça perfeita para seu corpo. O design estava na moda, e a gravata soltamente ao redor de seu pescoço dava o toque final.
Independentemente de como a vissem, hoje, Rin parecia um “belo jovem” impecável. Já que todas as damas continuavam a virarem-se para vê-la quando passavam, agora era a vez de Rin ficar com o rosto corado.
— Acho que... não estou muito diferente do normal.
— Oh, isso não é verdade! Você está completamente diferente! Ah... Mas, se fosse possível, eu queria tê-la vestido com minhas próprias mãos...
Extremamente desapontada, Lily lamentou. Para o banquete de hoje, ela estava encarregada de produzir todos os membros da mansão Cryinpt. Lily estava tão ocupada vestindo Miku e os outros durante toda a manhã que não teve a chance de vestir Rin. O modelo fora completado no dia anterior, mas parecia que, como a produtora, ela era quem mais queria vê-lo vestido perfeitamente.
— Oh, mas mesmo assim. Eu sou especializada em vestimentas, então enquanto acredito que roupas de princesas combinam mais com você... o visual de belo jovem de hoje também é ótimo. Sim, é realmente adorável! Como esperado, isso é graças ao dom da “Produção Lily” de melhorar a qualidade do material ao máximo... Sim, sim, assim como o esperado.
Parecendo se interessar pelo trabalho da transformação de Rin em um belo jovem perfeito, Lily gradualmente voltou aos seus hábitos usuais e parecia encantada ao ver seu projeto concluído.
— Ah, eu vou querer isso.
Conforme Rin ignorava seus murmúrios com um pouco de desgosto, uma empregada veio com álcool, e pegando uma taça de vinho, ela a drenou em um gole.
— ...Ah!
Limpando a gota que escorria com sua mão, Lily a encarou com olhar surpreso em seu rosto. Contudo, ela não foi repreendida por seu comportamento não refinado.
— ... O que houve desta vez?
— N-não, não é nada. Hm, eu só pensei que... você é realmente única. Ah! Falando nisso, eu não fazia ideia que você bebia álcool, Lady Rin.
— Quando eu disse que não bebia?
— Ah, bem, você realmente não disse, mas... Como devo dizer... É surpreendente, considerando o rosto adorável que você tem.
— Não precisa dizer que sou adorável!
Batendo a taça vazia na mesa, ela olhou para a multidão no centro do salão. Lá estava a estrela de hoje, Miku, e seu novo noivo — o filho do Visconde Iceburg, cumprimentando os convidados. Como sempre, Miku recebia olhares fervorosos de todos os rapazes ao seu redor. E como sempre, seu modelito de hoje era um que Lily pôs todo o seu esforço em produzir. Acentuado com um único lírio branco na altura no pescoço, o design no vestido de sereia preto complementava as belas curvas de seu corpo em uma forma madura. Os dois anunciaram seu noivado durante a cerimônia de abertura do banquete, e todos os nobres e residentes da mansão que estavam reunidos lhe deram suas felicitações.
Seu coração doía com uma sensação aguda. Ela não gostava disso, vê-la — ver Miku se aproximando de outra pessoa além dela. E acima de tudo, esse alguém não era família nem amigo, mas sim um homem que tinha o título de seu noivo. Desde que a conheceu, e até agora, houve ocasiões onde Miku devia priorizar outras pessoas acima dela. Mas, ela era um anjo. Ela sabia que os humanos tinham seus próprios relacionamentos, e particularmente não dava atenção a isso. Mas, mesmo assim, naquele dia... quando ela ouviu a palavra “noivado” sair de sua boca... Desde então, ela estava bem interessada no filho do Visconde Iceburg, e o observava durante suas pausas, e secretamente espionava suas conversas quando ele estava com Miku. Tudo isso porque ela não conseguia evitar sentir-se irritada por ver os dois se enturmando.
Antes que notasse, a performance musical se tornou uma balada lenta, e todos terminaram apressadamente suas conversas e começaram a dançar. Ela se lembrava de ter ouvido sobre esta música de Lily. Era uma valsa de amor composta há trezentos anos por um compositor popular da época, Earl Samon d’Doloppe, durante a Revolução Cultural que Züscheno III começou durante seu reinado.
Como ela havia estudado a fundo sobre etiqueta e conhecimentos básicos que nobres deveriam ter, ela estava um pouco feliz por conseguir prosseguir sem se envergonhar. Lily havia lhe dito que ela deveria dançar a versão contemporânea da canção, com os arranjos feitos pelo mestre Yama Yan Delta, então após um ensaio copiado, agora ela era capaz de dançar perfeitamente.
Olhando ao redor, ela viu, no centro do salão que ela observava com tanto incômodo mais cedo, não Miku, mas o Visconde Iceburg dançando com outras pessoas cercando-o. Parece que todos os homens estavam tendo seus corações roubados pela beleza de Miku. Com várias taças de vinho, eles caminhavam com determinação no salão onde todos estavam dançando. Era um arranjo gentil com uma melodia graciosa. Enquanto ondulavam com o ritmo da música, Miku assentiu educadamente para cada um de seus parceiros de dança, e sorriu como uma flor que desabrochava.

+ + + + +

A mão que gentilmente encontrou a sua era surpreendentemente pequena. Quando ela olhou para seu próximo parceiro, viu um jovem com mais ou menos a mesma altura que ela, com um olhar ranzinza no rosto. Ele era tão belo que ela perdeu a respiração por um instante, e sua reação demorou um segundo. Intrigada pelo lindo jovem, que não media esforços para esconder seu descontentamento neste lugar auspicioso, ela se curvou uma vez, e se perguntou se havia algo que o ofendia. Ela não havia o visto antes quanto estava cumprimentando os convidados com seu noivo.
— ...
— ...
— ...
— H-hm...
Sem saber o que dizer, ela tentou encontrar as palavras certas, e enquanto o fazia, o humor do lindo jovem parecia piorar cada vez mais, e ele deu um pesado suspiro. Com uma cara que parecia indicar que ele suspirou o equivalente a um ano de suspiros hoje, ele abriu sua boca para falar.
— Por que você não notou?
— ...
— ... Ha~ah...
— ...! Ah...? S-será que você é... a Rin?
— ...Não é que “talvez eu seja”, sou eu.
Pasmo por ter ela demorado tanto a perceber, o jovem diante dela murmurou reclamações com uma expressão desacreditada. Seu olhar descontente era, de alguma forma, cativante, e ela não conseguia imaginar isto vindo da animada e inocente Rin. As emoções de Rin estavam constantemente mudando, e era adorável observar. Mas hoje, Rin estava com suas sobrancelhas arqueadas a todo instante, dando um ar de desagradada, e junto com a aparência solta e amassada de seu colarinho, sua fadiga tinha uma atratividade indescritível.
Diante desta magnífica cross dressing, até mesmo Miku, que geralmente conseguia falar sem qualquer tipo de hesitação, estava surpresa. Hoje, Rin estava tão...
— Incrível...
— ...Hã? Você disse alguma coisa?
Conforme a valsa ondulante se aproximava de seu clímax, e o crescendo ressoava, parecia que Rin não conseguia ouvi-la.
— Hm... N-não foi nada.
O que ela havia dito...? Pensando nisso, ela começou a se sentir embaraçada. Mas Rin estava realmente atraente hoje. Enquanto se pegou admirando sua aparência, fascinada, ela esqueceu até mesmo de respirar. Rin, que sempre foi como uma irmã mais nova para ela, repentinamente se tornou um garoto — e, acima de tudo isso, um tão belo que todos se viravam para ver novamente; não era de se espantar que ela estava tão chocada. Além disso, como ela estava se movendo sem parar desde a manhã com os preparativos para o banquete e recepcionando os convidados, ela estava um pouco cansada.
Por enquanto, ela simplesmente via sua elegante parceira de dança, mas como sempre, Rin estava olhando ao redor irritada. O que aconteceu? Por algum motivo, ela estava usando as roupas pretas que ela tanto odiava na aparência de um garoto.
— Estas roupas... combinam perfeitamente em você. Você está maravilhosa.
— ...Obrigada. Embora eu não esteja muito contente em ouvir isso.
Era como ela pensava, Rin estava vestindo-as contra sua vontade. Embora isso a deixe feliz que ela tenha feito isso para participar da festa.
— Hm, falando nisso, por que você está vestida como um...
Assim que estava prestes a perguntar sobre sua aparência masculina, ela repentinamente foi puxada para perto. A música lenta mudou para uma melodia intensa e passional, como se para combinar com os movimentos de Rin. Surpresa pela mudança repentina, ela deixou Rin puxá-la e conduzir a dança.
Ela está agindo... como um homem agiria...
O anjo diante dela estava com as sobrancelhas franzidas, e não parecia começar uma conversa. Por causa de seu rosto impecável, como o de uma escultura, e sua frieza, ela parecia uma pessoa completamente diferente.
Eu tenho que encontrar algo para dizer...
O clima estava diferente do habitual e, por causa disto, ela se sentia nervosa, por algum motivo. Conforme dançavam ao ritmo da melodia intensa, ela tentava encontrar algo para falar. A canção tinha um ritmo mais rápido que a anterior e, embora ela mal conseguisse acompanhar os passos difíceis em seu estado atual, “ele” estava dançando graciosamente, sem movimentos errados.
— Hm... Você dança muito bem. Ainda mais por ser a parte masculina. Isso foi inesperado.
— ...Eu posso parecer assim, mas eu já vivi muito mais tempo que você, sabe?
Conforme disse isso, Rin facilmente levantou o corpo de Miku e a girou três vezes. Neste momento, vozes de admiração surgiram de todos ao seu redor. Era uma técnica que até mesmo homens fortes tinham dificuldade de executar. Como sempre, Rin estava dançando com um olhar calmo e desapontado, mas quanto a ela, seu rosto estava quente de novo, chocada pelo movimento surpresa. Rin, fofa, animada e inocente, que ela via como uma irmã mais nova. E às vezes, ela era tão confiável e capaz de fazer qualquer coisa; um sábio e maduro anjo. Era como se fosse outra pessoa completamente diferente. Ela estava convencida que Rin, na verdade, tinha dois lados. De qualquer forma, seus batimentos acelerados não pareciam se acalmar mesmo depois de um tempo.

+ + + + +

A lua havia começado a se pôr, e o banquete estava chegando ao fim. Ela estava em uma pequena varanda em um dos quartos de hóspedes, uma distância e tanto do salão principal. Tirando suas roupas restringentes, ela relaxou suas asas, batendo-as de leve. Se ela continuasse a mantê-las dobradas daquela forma, ela provavelmente teria dores musculares no dia seguinte. Após dançar com Miku, várias outras mulheres vieram pedir uma dança com ela. Ela estava um pouco cansada de receber tantos olhares passionais o tempo todo. Além dos momentos em que ela estava com Miku, ela nunca havia falado diretamente com humanos, então ela estava um pouco desnorteada pelas interações inesperadas com tantas mulheres. Ela ficou surpresa com ouvir de Lily que foi confundida com um nobre, e foi bem recebida pelas mulheres.
Aproveitando o ar noturno, ela bebericou seu champanhe. Até mesmo no Paraíso, eles tinham álcool. Anjos também bebem álcool, mas não ficam afetados por isso. Não importa o quanto bebessem, anjos não perdiam a razão como os humanos.
— Rin! Aí está você.
Ouvindo uma voz familiar, ela se virou para ver Miku com um olhar um tanto quanto preocupado. O banquete ainda não havia acabado, então ela fugiu em segredo?
— Bom trabalho hoje. Tudo bem a estrela do dia estar vagando por aqui assim?
Embora ela não estivesse e não pudesse estar bêbada, por algum motivo, ela agiu de forma ríspida. Ela pensaria que Rin está de mal humor todo este empo? Mas, acostumada com isso, Miku sorriu de volta para ela.
— Eu já me despedi de forma geral, e além disso, todos irão se divertir mais sem mim lá. Se a anfitriã estiver por perto todo o tempo, todos ficarão muito presos a ideia de que devem ser corteses que não conseguirão se divertir.
— Hm, acho que faz sentido.
Rin deu uma resposta vaga, só para mostrar que estava ouvindo. Ela não tinha interesse nas sutilezas de expressões meticulosas ou conspirações que os humanos tinham. Ela não se deu ao trabalho de vir ao mundo humano hoje para se misturar a tantos humanos.
O que ela queria saber era algo diferente.
— Você vai... se casar... com aquela pessoa?
Aquela pessoa. O homem que estava ao lado de Miku durante o banquete. Embora hoje tenha sido a primeira vez que eles conversam, ele não parecia ser uma má pessoa. Tanto nos bons quanto nos ruins, ele era um humano normal. Mas, por algum motivo, ela não conseguia ignorar os sentimentos turvos e ondulantes dentro de seu coração. Toda vez que ela o via bem com Miku, um desconforto indescritível surgia nela. Em sua longa vida como anjo, é a primeira vez que ela se sente assim.
Esses sentimentos amargos podem ter tomado forma em sua expressão, pois Miku estava com um rosto um tanto quanto confuso.
— Nós ainda estamos apenas noivos... então embora não nos casemos oficialmente ainda... minha mãe deseja muito que aconteça o casamento, então acredito que quando a festa acabar, nós vamos discutir isso a fundo.
— ...Você ama esta pessoa?
Ela perguntou o que mais queria saber. Embora ela não entenda muito sobre costumes humanos, até mesmo um anjo entendia que um casamento era algo que acontecia quando duas pessoas se amam.
— ...Eu não tenho certeza.
— Você não tem certeza e vai se casar? Com alguém que você pode nem mesmo amar...?!
— Isso mesmo...
— P-por quê? Você não acha isso estranho?
— Se eu não fizer isso... não poderei viver...
— ...Hã...?
— A verdade é que... eu sou adotada. Meus pais biológicos morreram há muito tempo. E a pessoa que é minha mãe agora, na verdade é minha tia. Ela entrou para a família ao se casar com o anterior chefe da família e, sendo assim, não temos laços de sangue. Mas, desde que meus pais faleceram, ela me aceitou e cuidou de mim como sua filha.
— Entendo...
Anjos não se reproduzem. Eles nascem diretamente da Árvore da Vida. Por isso anjos não têm parentes ou irmãos. O que eles têm são suas missões e os laços em seu coração.
Mas os humanos são diferentes. Quem dá à luz aos humanos são outros humanos. Por isso Rin não entendia exatamente pelo que Miku estava passando para lhe dizer sobre estas circunstâncias. Mas mesmo assim...
— Se ela não estivesse comigo, eu estaria sozinha por todo esse tempo... Porque... meus pais, minha casa, tudo... tudo o que eu amava foi queimado naquela noite...
— ...
— Meus pais... eram pessoas maravilhosas. Eu acredito que eles se amavam de verdade do fundo de seus corações... Eles eram maravilhosos... Por isso, eu sonhava em ter um amor incrível um dia, assim como eles tiveram.
— Se esse é o caso... então não corra para um casamento arranjado...!
— Mas... o fato que eu vivo nesta mansão... é tudo por causa de minha mãe. Por isso... eu tenho que... cumprir suas expectativas...
— Expectativas...?! Será que você pode mesmo chamar isso de amor, então?!
— Então me diga, Rin, você trairia Deus?!
— !
Encarando-a diretamente com um olhar quase acusador, parecia que ela pegou seu coração com as próprias mãos, fazendo-a prender a respiração.
Trair Deus? Tal coisa nunca nem mesmo passou por sua mente.
— Eu poder viver aqui agora é tudo por causa da minha mãe. Por isso eu não posso trai-la. Mesmo que não seja amor... eu tenho... que cumprir suas expectativas... suas expectativas...
Até agora, ela nunca viu esse tipo de expressão no rosto de Miku. Ela sempre sorria, não importa o que acontecesse. Olhar para ela agora e ver sua dor, seus olhos prontos para explodirem em lágrimas a qualquer momento... fazia seu peito se apertar.
— Ei, Miku... Há alguém que você ame?
— Hã...?
Ela perguntou isto com seus sentimentos mais sinceros. Miku levantou a cabeça ao ouvir a pergunta repentina, um tanto confusa.
— Eu... nunca me apaixonei antes.
— ...Eu sou um anjo, então eu não entendo assuntos humanos muito bem. Mas, a Lily me contou. Sobre como a felicidade que você encontra com a pessoa que você ama... é a melhor felicidade da vida.
— Está tudo bem, Rin. Até agora, eu já fui mais que feliz. Ser criada pela minha mãe nesta mansão, ser cercada por tantos servos como a Lily e o pessoal. Sempre ser tratada tão bem por todos que conhecia na cidade. E... — Miku gentilmente tocou sua mão, encontrando seu olhar. — E Rin, você também esteve ao meu lado.
Atrás de seu sorriso realmente feliz e brilhante, ela encontrou as pistas de seus sentimentos negativos que conseguiram escapar. Esta era a solidão que ela sempre escondia?
Ela disse mais cedo — “Mesmo que não seja amor”.
Após perder seus amados pais tão jovem, ela foi criada para ser meramente uma ferramenta para continuar a linhagem da família, sem nem mesmo lhe ser permitido o amor. Entendendo que este era seu único valor, sem reclamar e escondendo todo o seu descontentamento e dor dentro de si, ela ainda sorria apesar de tudo.
Eu quero protegê-la. Eu quero, para sempre...
— ...!
Antes que percebesse, ela a beijou pelo impulso do momento. Por um segundo, Miku nem mesmo piscou, e simplesmente ficou paralisada.
Finalmente voltando aos seus sentidos, ela a afastou com força. Presa entre a surpresa, a confusão e o embaraço, Miku a encarou.
— H-hm...
Com sua cabeça em pânico, Rin sabia que tinha de dizer algo, mas as palavras não vinham. Quem estava mais chocada provavelmente não era Miku, mas ela mesma.
— Ngh...
— Ah, espere...!
Embora Rin tenha estendido a mão, não conseguiu tocá-la e pegou apenas o ar. Incapaz de alcançá-la, ela apenas ficou ali, boquiaberta. O que ela havia feito? O que passou por sua cabeça quando a viu prestes a chorar? Agora a noite chegou por completo, e embora devesse estar silencioso ao redor dela, tudo o que ela conseguia ouvir era o ruído alto de seus batimentos.


¹ Há um ditado japonês que diz que idiotas não pegam resfriados.


<< Capítulo Anterior                                                                        Próximo Capítulo >>

Nenhum comentário:

Postar um comentário